segunda-feira, 12 de abril de 2021

A JANELA AO LADO

Estava trancado há tantos dias que já havia perdido a noção do tempo. Ter sido contaminado pela Covid-19 era de longe seu menor pavor. Morrer sozinho e distante dos seus entes queridos sem direito nem ao menos a um velório, isso sim o assombrava. Seria como se morresse duas vezes. Por isso, apesar de doente, estava de algum modo feliz pela enfermidade não ter agravado ao ponto de interná-lo. Isolado naqueles cômodos, tinha a visita solitária do filho único (que, aliás, por sorte morava com a família no mesmo andar) e a vista unilateral da janela do quarto de onde raramente saía, cuja paisagem desolada de uma construção só lhe deixava mais deprimido e mal-humorado. Queria muito ver os netos, não apenas pela saudade, mas também por medo de ser hospitalizado após alguma piora e depois falecer de repente, sem ao menos guardar na memória uma lembrança recente deles. E quando da sua janela outra vez reclamava aos ventos por causa dos barulhos da obra, subitamente lhe veio uma ideia inusitada na mente ao observar a fachada do seu prédio. Um plano arriscado, porém, possível. Caminhar pela borda não muito estreita do edifício, passar por dois apartamentos vizinhos até chegar ao da sua família. Por esses dias já tossia bem menos e nunca teve qualquer medo de altura ou vertigem. Se caísse, talvez sobreviveria, pois eram apenas dois andares até o chão. Ao menos na hora assim raciocinou. “Já tem tempo que estou pronto para bater as botas mesmo” — pensou, ironizando a si mesmo. Sabia que naquela tarde toda a sua família estaria em casa. Era um dia quente e seco, sem ventos. Perfeito para aquele plano arriscado. Então, de meias apenas, após tirar os sapatos, foi caminhando lentamente pela borda da fachada, escorando na parede externa com as mãos e rosto. Teve o cuidado de usar máscara. Passava pelo primeiro apartamento. Reservado e antissocial como sempre foi, mesmo morando há anos por lá, nunca manteve amizade com vizinhos, e exceto pelo filho, a nora, os dois netos, o porteiro e a síndica, não conhecia ninguém direito daquele prédio, muito menos quem morava ao seu lado. Através do vidro fechado pode reparar num casal de uns trinta anos, distraidamente assistindo à TV com uma criança no berço. Retribuiu um sorriso que ela lhe deu. Alguns instantes depois já estava no próximo, com a janela aberta, mas protegida por uma tela. No peitoril interno um gato cochilava descansando mansamente. Deixou que lhe cheirasse a mão para não assustá-lo, o que acabou dando certo. Um pouco mais e finalmente chegaria à janela que tanto queria. Para sua sorte, as crianças mantinham-se deitadas no chão da sala lendo livros, estudando, possivelmente. Conseguia ouvir a voz do seu filho vinda da cozinha, conversando com a esposa justamente sobre ele. Estava preocupado com o pai. E com razão. Permaneceu estático, admirando-os apenas, sem ninguém notar. Foram seis minutos somente, mas que aos seus olhos valiam seus sessenta anos de vida. Acalmado o coração, decidiu fazer o caminho inverso antes que fosse descoberto. Foi regressando mais rápido do que havia ido. E quando já estava quase entrando de volta em seu quarto, de repente um dos operários da construção gritou: “— Olha que velho doido!”. Assustado pelo grito, perdeu o equilíbrio e começou a cair. Quando já preparava-se para a queda, sentiu alguém lhe segurando firme pelos braços. Rapidamente apoiou-se com a perna na varanda e entrou num salto pela janela aberta. Na hora só pensou em advertir aquela senhora que lhe socorreu sobre seu quadro de saúde. Ao ouvi-lo, ela respondeu com gracejo: “— Não se preocupe. Estou com coronavírus também!”. Tinha praticamente sua idade, vivendo igualmente sozinha em viuvez. Naquele dia, depois de muitas histórias compartilhadas, passaram a noite juntos. Pela manhã, só voltou para seu apartamento porque sabia que o filho o visitaria cedo. Subiu correndo pela escada com cuidado para não encontrar alguém ou tocar no corrimão. Repetiu o mesmo trajeto por semanas em segredo. Bem antes disso, os dois já estavam curados. Passados três meses, reuniram seus familiares para contar que iriam se casar no final de setembro. Continuaram a morar cada um em seu apartamento. Para manter o romantismo, sempre trocam cartas de amor, presentes e beijos lançados pelas janelas.

  Geraldo Ramiere

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