segunda-feira, 17 de maio de 2021

BUSHIDO

             

IMAGEM: estátua japonesa de samurai - galeria do Hotel Bellagio, Las Vegas, EUA.

           Já estava quase encerrando seu horário quando ligaram para realizar uma última entrega. Somente quando pegou a encomenda viu que o endereço ficava no outro extremo da cidade. Apesar do cansaço e preocupado com o tempo que começava a se fechar numa escuridão cinza, cumpriria aquela tarefa antes de voltar para casa. Com todo cuidado guardou o pacote no porta-objetos da moto, afivelou bem o capacete sobre a nova máscara e seguiu a rota planejada. Por ser fim de tarde pegou justamente a hora do rush.

Através do trânsito intenso acelerava, mas sem imprudência. Nesses tantos anos como motoboy feriu-se apenas uma única vez e mesmo assim não foi culpa sua. A barbeiragem de um motorista bêbado que fugiu sem prestar socorro lhe custou duas costelas quebradas e um mês acamado sem receber salário. Em seu coração não restava raiva ou rancor, mas desde então sua cautela era maior do que nunca. Escapava do congestionamento driblando automóveis feito um bailarino. Com a pandemia os pedidos aumentaram bastante, ainda mais nestes dias de lockdown, disso não podia reclamar, contudo, a maioria das pessoas parecia estar mais impaciente do que antes, inclusive no trânsito, fazendo de cada dia uma batalha diária, a qual enfrentava sem medo. Seus colegas de profissão ansiavam agitados diante do semáforo enquanto ele aguardava com calma a abertura do sinal vermelho que jamais furou. Lógico que tinha receio de ficar doente, principalmente por sua família, porém, no momento não havia outra opção a não ser trabalhar tomando todos os cuidados e pedir proteção em suas orações.

Começava a chover com intensidade. Para chegar mais rápido e fugir de outros engarrafamentos, pegou um atalho que conhecia. Às vezes pensava em mudar de profissão, sobretudo pelos riscos, entretanto, sabia que aquele trabalho era muito importante para muitas pessoas, especialmente naquele momento em que a maioria precisava permanecer em seus lares o quanto pudesse. Sentia-se honrado por isso. Oculto no buraco camuflado pela poça d’água, não havia como ver aquele pedaço pontiagudo de vidro rasgando um dos pneus. Na hora manteve a tranquilidade e, sem frear, conduziu a moto até um canteiro gramado. Apesar daquela situação, agradeceu por ter evitado uma tragédia maior. Dois garis lhe ajudaram a tirá-la da pista. Não havia outros motoqueiros por perto para socorrê-lo, nem muito menos alguma borracharia pelas proximidades. Ainda estava distante do destino. O jeito era esperar debaixo do viaduto até que a tempestade passasse. Como se não pudesse piorar, seu telefone ficou sem bateria.

Apenas após quase quarenta minutos começou a estiar. Já era noite. Empurrou a moto por quatro quilômetros até chegar ao endereço. Nem imaginava como faria para consertá-la, muito menos como retornaria. Pensou em desistir, mas o compromisso falava mais alto. Finalmente chegou ao prédio. Tirou o capacete e trocou a máscara com a última que havia sobrado no bolso. Mesmo com tudo molhado, desinfetou todo o seu equipamento antes de retirar a encomenda. A loja avisou que precisava ser entregue em mãos. Observou aquele belo embrulho com curiosidade, mas nem tentava imaginar o que haveria dentro. Com a roupa encharcada subiu os degraus com passos pesados e lentos. Ainda bem que era no primeiro andar. Perante o apartamento número sete tocou a campainha. Ouviu suaves sons de sinos. Estava horas atrasado. Ao abrir a porta foi atendido por uma senhora de sorriso gentil. Pelos olhos deduziu que fosse oriental ou descendente, japonesa talvez. Quando lhe entregou o presente, abriu-o imediatamente com suas mãos protegidas por luvas brancas: era um jarro com flores. Sentiu-se contente pela moto não ter caído. Com certeza teria quebrado ou danificado as pétalas.

— São crisântemos. Sempre foram as minhas preferidas — a idosa mulher disse subitamente.

— São muito bonitas — Respondeu com espontaneidade, sem disfarçar a exaustão e a voz ofegante.

— Toda vez que eu fazia aniversário meu esposo me presenteava com flores assim e continuei a recebê-las mesmo após sua morte — Completou, já com as lágrimas acumulando-se nos sulcos dos olhos escavados pelo tempo. Sem saber o que falar, ele apenas sorriu amavelmente.

— Por favor, entre e tome um pouco de chá — Ofereceu, enxugando os olhos.

— Muito obrigado senhora, mas tenho que ir — Agradeceu.

— Deixe-me então ao menos enxugar sua jaqueta — E antes que pudesse dizer não, ela retirou seu casaco e rapidamente entrou para dentro.

Por entre a porta entreaberta observou os porta-retratos com diversas fotos dela com um senhor, provavelmente seu marido. Retornou alguns minutos depois com o agasalho totalmente seco. Ambos disseram obrigado e em seguida o motoboy desceu rumo à portaria. E ao apanhar as suas chaves no bolso, encontrou aquele envelope. Dentro havia uma boa quantia de dinheiro e um bilhete manuscrito: “Pela janela vi quando você chegou. Muito grata por todo esforço. Atrás do edifício há uma oficina aberta ainda. Sempre acredite em seu caminho”. Na hora sua reação foi apenas agradecer olhando para o céu. Naquele momento percebeu como estava tão estrelado.

                                                                                                                     Geraldo Ramiere 


          

sexta-feira, 7 de maio de 2021

CLT

 Em suas mãos negras contemplava a carteira de trabalho aberta em branco. Da última entrevista de emprego, disseram que talvez ligariam até o fim da semana. Mesmo sendo sábado, ainda acreditava. Afinal hoje era 1º de Maio e quem sabe de fato fosse seu dia. A noite chegou e o telefone permaneceu em silêncio, porém, continuava ouvindo o próprio coração.

Geraldo Ramiere


IMAGEM: pintura de Antonio Berni.


Tradutor