por Geraldo Ramiere
terça-feira, 30 de junho de 2020
O JARDIM DE OMAR
por Geraldo Ramiere
INSURGIR
Nada mais revolucionário
Do que um beijo diante do ódio
Do que o abraço perante a dor
Do que amar sem definição
Nada mais revolucionário
Do que transbordar poesia
E acreditar no outro dia
Mesmo na pior aflição
Nada mais revolucionário
Do que não se deixar morrer
Do que contrariar as estatísticas
E dentro de si ser revolução
Geraldo Ramiere
INFRAÇÃO DA INFÂNCIA
Por causa da pandemia sabia que sua família não lhe deixaria sair para o parquinho, mesmo acompanhada e tomando todas as precauções. Depois de tantas semanas presa dentro de casa, olhando aquele balanço pela janela, sonhava em respirar ar puro e sentir o sol no rosto. Guardou esse sentimento por tanto tempo que uma hora não aguentou mais. Quase sempre sentada no sofá, durante dias observou o movimento dos adultos no apartamento até conseguir uma brecha. Naquela segunda-feira finalmente esqueceram a chave na fechadura. Silenciosa como era, sem ninguém perceber pôs sua máscara e luvas, abriu a porta e desceu passo a passo pelas escadas dos dois andares até o térreo. Aguardou ainda a distração do porteiro e a entrada de algum outro morador do prédio para escapulir sorrateiramente. Quase saltitou ao constatar que seu plano tinha dado certo. Sentada no balanço, moveu-se sem ser muita veloz, para não ter risco de cair. Nem se incomodou com os cabelos nos olhos por causa do vento. O que é felicidade afinal? Para ela era aquele momento que deve ter durado uns trinta minutos, porém, tinha gosto de eternidade. De longe ouviu o grito desesperado de alguém lhe chamando e pouco depois um certo tumulto na portaria. Mesmo percebendo a aproximação das pessoas, continuou tranquilamente em seu balançar. Parou apenas quando um rosto familiar esbravejou: “Vovó!”. Era a mais velha de suas netas, rodeada por outros membros da família, a maioria sem conseguir segurar o riso. E a sonora gargalhada solta por aquela octogenária senhora, daquelas que ela não dava desde a infância, estava imune a qualquer enfermidade.
segunda-feira, 29 de junho de 2020
POR ONDE ATRAVESSA O SOL
Mário Quintana
Mesmo que demore, nos reencontraremos
Nas praças iluminadas de um novo dia
Respirando juntos a gratidão pela vida
E os vapores das lágrimas pelos que foram
Dentro de nós amanhecerá outra vez
As ruas sorrirão ao rever nossos rostos
E numa ciranda seguraremos as mãos
Sem temer o próximo crepúsculo
Cada abraço será único
Como se fosse o último e o primeiro
E toda saudade se sentirá saciada
Na sede do derradeiro olhar
Enquanto isso é preciso manter
As janelas e os corações abertos
E destrancar aqueles aferrolhados
Como quem escreve um poema
Geraldo Ramiere
PANDEMIA
domingo, 28 de junho de 2020
ANCESTRALIDADES
Quanto marcas na pele
E cada uma delas
Possuem histórias
Que atravessam eras
Fronteiras e mares
Algumas continuando
Abertas feito feridas
Expostas e doídas
Sobre as superfícies
Levemente ásperas
Da memória e do tempo
Quando fecho os olhos
Consigo escutar
Cantigas, cantares e vozes
Antepassados que hoje
Em minha cabeça
Orientam meus caminhos
Geraldo Ramiere
IMAGEM: pintura de Darla Nelson
LETRA POR LETRA
NO BALÉ DA REALIDADE CISNES NEGROS SÃO BALEADOS
Contra uma família inocente
Negra, num carro branco
Mataram o pai músico
E um rapaz que tentou ajudar
“Foi engano”, disseram os militares
Assassinaram uma menina
Ela tinha oito anos
"Fazia balé", disse o avô
“Houve confronto”, falaram os PMs
Morreu com tiro de fuzil
Era negra também
Um músico, uma bailarina
Que não mais farão arte
Igual há tantas e tantos
Mortos por causa da pele
Que talvez seriam cisnes negros
Um Cruz e Sousa, uma Clementina
Elza Soares, Mano Brown, Elisa Lucinda
Junto com outros e outras artistas
Dando um baile nas estatísticas
Mas que ainda são exceções
Porque no Brasil, balas perdidas
Tem na cor preta alvo tradicional
Num certo dia, eu, ser crítico
Consciente das minhas raízes
Estava num ônibus quando
Entraram dois jovens negros
Cuja simples presença deixou
Todos os passageiros tensos
Inclusive a mim, sim, a mim
Foi quando as Carolinas de Jesus
Dos meus quartos de despejo
Protestaram: “moço, você foi racista!”
E desde então admito que ainda
Tenho senzalas para libertar
Geraldo Ramiere
IMAGEM: pintura de Wilson Tiberio.
sábado, 27 de junho de 2020
NA LITERÁRIA TRAVESSIA DE VIVER
Geraldo Ramiere
A CIDADE E AS NUVENS - Brasília 60 anos de poderes, pesares e poesia.
29 DE FEVEREIRO
ASSOMBRAMENTOS
Afonso Romano de Sant’Anna
E os desaparecidos reapareceram
Repentinamente, por todos os lugares
Que desapareceram por anos ou dias
Parecendo que nunca mais voltariam
Pessoas que até teriam morrido
Ou ao menos isso que pensaram
Sem prévio aviso de súbito surgiam
E reaparecidos agora eram
Num assombro sob sombras
Suscitando ao mesmo tempo
Alívios e alegrias naqueles
Que ainda os procuravam
Como também espanto e desespero
Nos que tinham seus desaparecidos
Há tempos enterrados
Foi quando também subitamente
Os outrora aparecidos começaram
A desaparecer, pouco a pouco
Desde então assim vivemos
Com nossos antes desaparecidos
Sem sabermos quando nós mesmos
Desapareceremos, incluindo eu
Um dos poucos remanescentes
Escrevo este poema já consciente
De que quando menos esperar
Desaparecerei também
Completamente
Geraldo Ramiere
sexta-feira, 26 de junho de 2020
ANATOMIA DO INTOCÁVEL
Creio que ela tem
A forma de um poema
Que se escreve
Verso por verso
Livre e infinitamente
A cada novo dia
Continuando a compor
Sua própria poesia
Geraldo Ramiere
IMAGEM: pintura de Vladimir Kush
quinta-feira, 25 de junho de 2020
LITERÁRIA CONURBAÇÃO
O ÚLTIMO POEMA DO ANO
Das penúltimas horas do ano
Escreve-se o último poema
Em versos tingidos pelo tempo
De cada instante que se esgota
Como se terminasse um livro
E feito alguém que sabe
O exato momento de sua morte
O ano observa seu último poema
Despedindo-se pouco a pouco
E sendo, agora, ambiguamente
Epitáfio e esperança
Geraldo Ramiere
IMAGEM: Cartaz do filme "O Último Poema" - direção Mirela Kruel
quarta-feira, 24 de junho de 2020
ESPELEOLOGIA
Ainda criança ao caminhar perdido e sozinho
Recordo-me que tive medo, mas mesmo assim entrei
Iluminado apenas pela lanterna que trazia comigo
Em minha lembrança ficou o cheiro daquele lugar
E de como estava admirado com tamanha descoberta
Encontrando-me onde ninguém nunca esteve antes
Desde então dela fiz abrigo e esconderijo
Para qual ia sempre quando queria fugir lá de fora
Ao passar dos anos fui descobrindo outras cavernas
Que nunca imaginei existirem em meu interior
Com estalactites de lágrimas acumuladas pelo tempo
Principalmente das minhas rochas sentimentais
Mas também em meus mares e terras glaciais
Cada vez mais profundas, tanto que algumas
Ainda hoje tenho receio de ir até seu fim
E à medida que fico mais velho
Percebo que outras cavernas vão surgindo
Pela força das águas que passam em mim
Ou após os terremotos e vulcões no meu peito
Nessa minha exploração encontrei cavernas
Onde havia seres viventes, a maioria sobrevivendo
Sem nunca terem conhecido a luz do sol
Contudo, o que mais me surpreendeu
Foi descobrir algumas há muito tempo habitadas
Com imagens rupestres e até manuscritos
Então atônito me ative que elas eram
Ou já foram também de outras pessoas
E através delas estamos todos interligados
Neste mundo subterrâneo que até agora
Nenhuma geologia da alma conseguiu explicar
Assim meu ser telúrico se perde e encontra
Continuando a procurar por novas cavernas
Por entre fendas e brechas, sempre a ouvir
Os ecos que ressoam pelos vazios
Geraldo Ramiere
IMAGEM: fotografia interna da caverna búlgara de Prohodna, que possuí dois "olhos abertos" no teto.
domingo, 21 de junho de 2020
ÁRVORES DO SOL
MECENAS
Por Geraldo Ramiere
sábado, 20 de junho de 2020
UMA ESPAÇONAVE PARA O PEQUENO PRÍNCIPE
SEUS OLHOS RASCUNHANDO SONHOS
Seus olhos rascunhando sonhos, por detrás da íris
Sob os arcos oníricos das portas que se abrem
Para dentro, por fechaduras e entre as frestas
Vejo o que escreves lentamente na neblina
São seus olhos rascunhando sonhos
Manuscritos em belas letras imaginadas
Pelas perenes percepções imperturbáveis
Semelhantes ao repouso no leito de Morfeu
Após a deusa Maya retirar os véus
E somente agora descubro que sou eu
Em seus olhos rascunhando sonhos
Adormecido sobre esses braços de poesia
Que com versos vela meu sono
Geraldo Ramiere
IMAGEM: pintura de Jim Warren
sexta-feira, 19 de junho de 2020
NAU DE ESTRELAS
PRIMAVERA NA GENTE
quinta-feira, 18 de junho de 2020
DEPOIS DE DERRUBAR A DERRADEIRA ÁRVORE
E cada folha for uma lágrima de fogo
Quando matarmos todas as matas
E derrubarmos a derradeira árvore
Qual outra natureza assassinaremos?
O que mais iremos desmatar e destruir?
Depois de derrubar a derradeira árvore
E restar apenas um devastador vazio
Quem culparemos por nossa desgraça?
Perante um planeta que já perecia
Permanecemos ignorando o que nos dizia
Implorando socorro por sinais de fumaça
Pode ser que nossas faces de ganância
Fiquem melhores respirando em máscaras
E depois de derrubar a derradeira árvore
O que ainda houver de verde e as cores
Destoantes do cinza, talvez sejam vistas
Com envergonhados e vorazes olhares
E quando juntos aos demais animais
Já estivermos quase sendo extintos
Pra que nos servirá poder e dinheiro?
Para quem tantos bens deixaremos?
Se o maior dos males já fizemos
Depois de derrubar a derradeira árvore
Geraldo Ramiere
COLHEITA
Tradutor
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IMAGEM: estátua de Luis Cruls em Planaltina-DF. ALTA MIRAGEM Para onde será que tanto olha Luís Cruls com sua luneta Parado parecendo estátu...
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INSURGIR Nada mais revolucionário Do que um beijo diante do ódio Do que o abraço perante a dor Do que amar sem definição Nada mais revolu...