terça-feira, 30 de junho de 2020

O JARDIM DE OMAR


IMAGEM: pintura de Raquel Taraborelli.

Apesar de sermos vizinhos há anos, eu e Omar nunca nos falamos. Uma vez trocamos sorrisos. Descobri que era jardineiro quando a pandemia passou. Depois do fim da quarentena, o síndico bateu em nossa porta: o Omar havia morrido de aneurisma e me deixou um presente. Quando entramos, seu apartamento estava repleto de vasos com diversas plantas e flores. E ao abrir as janelas, avistei aquele terreno baldio. No dia seguinte chamamos os moradores, mesmo quem não conhecíamos. A maioria ainda não tinha saído e mantinha o medo por meses cultivado. Alguns dias após retirarmos o entulho, terminamos de construí-lo. Hoje é cuidado por todos. E nos fins de tarde em que sento-me próximo aos gerânios e gardênias, olho para as janelas e me sinto como Omar, contemplando seu jardim.


por Geraldo Ramiere

INSURGIR

INSURGIR

Nada mais revolucionário
Do que um beijo diante do ódio
Do que o abraço perante a dor
Do que amar sem definição

Nada mais revolucionário
Do que transbordar poesia
E acreditar no outro dia
Mesmo na pior aflição

Nada mais revolucionário
Do que não se deixar morrer
Do que contrariar as estatísticas
E dentro de si ser revolução

Geraldo Ramiere

INFRAÇÃO DA INFÂNCIA

IMAGEM: Arte de Trash Riot

            Por causa da pandemia sabia que sua família não lhe deixaria sair para o parquinho, mesmo acompanhada e tomando todas as precauções. Depois de tantas semanas presa dentro de casa, olhando aquele balanço pela janela, sonhava em respirar ar puro e sentir o sol no rosto. Guardou esse sentimento por tanto tempo que uma hora não aguentou mais. Quase sempre sentada no sofá, durante dias observou o movimento dos adultos no apartamento até conseguir uma brecha. Naquela segunda-feira finalmente esqueceram a chave na fechadura. Silenciosa como era, sem ninguém perceber pôs sua máscara e luvas, abriu a porta e desceu passo a passo pelas escadas dos dois andares até o térreo. Aguardou ainda a distração do porteiro e a entrada de algum outro morador do prédio para escapulir sorrateiramente. Quase saltitou ao constatar que seu plano tinha dado certo. Sentada no balanço, moveu-se sem ser muita veloz, para não ter risco de cair. Nem se incomodou com os cabelos nos olhos por causa do vento. O que é felicidade afinal? Para ela era aquele momento que deve ter durado uns trinta minutos, porém, tinha gosto de eternidade. De longe ouviu o grito desesperado de alguém lhe chamando e pouco depois um certo tumulto na portaria. Mesmo percebendo a aproximação das pessoas, continuou tranquilamente em seu balançar. Parou apenas quando um rosto familiar esbravejou: “Vovó!”. Era a mais velha de suas netas, rodeada por outros membros da família, a maioria sem conseguir segurar o riso. E a sonora gargalhada solta por aquela octogenária senhora, daquelas que ela não dava desde a infância, estava imune a qualquer enfermidade.


Por Geraldo Ramiere

 Miniconto publicado na antologia Entre Janelas: volume II (2020) – Oribê Editorial – Org. Mayã Fernandes.

segunda-feira, 29 de junho de 2020

POR ONDE ATRAVESSA O SOL

"Quem faz um poema abre uma janela."
                                     Mário Quintana

Mesmo que demore, nos reencontraremos
Nas praças iluminadas de um novo dia
Respirando juntos a gratidão pela vida
E os vapores das lágrimas pelos que foram

Dentro de nós amanhecerá outra vez
As ruas sorrirão ao rever nossos rostos
E numa ciranda seguraremos as mãos
Sem temer o próximo crepúsculo

Cada abraço será único
Como se fosse o último e o primeiro
E toda saudade se sentirá saciada
Na sede do derradeiro olhar

Enquanto isso é preciso manter
As janelas e os corações abertos
E destrancar aqueles aferrolhados
Como quem escreve um poema

Geraldo Ramiere


NÃO DEIXE NENHUM VÍRUS CONTAMINAR TEU CORAÇÃO


PANDEMIA

                                                       IMAGEM: pintura de Zdzislaw Beksinski

Quando percebemos, as pessoas já estavam doentes. Talvez porque no início os sintomas eram imprecisos, talvez porque não queríamos enxergá-los. O que parecia algo tão distante e improvável, não demorou para que dos primeiros caso isolados, logo chegássemos a uma contaminação em massa, atingindo praticamente o mundo todo. Já sabemos que é um mal antigo, numa forma nova e atual. Os governos dizem fazer de tudo para combatê-lo, porém parece haver interesses maiores. Uma parte de nós, alguns por medo, outros por cuidado, trancou-se em seus lares, prisioneiros de si mesmos, saindo apenas em extrema necessidade. Mas muitos continuaram nas ruas normalmente, ignorando todos os avisos. E o pior foi que a maioria não quis acreditar na existência dessa doença ou simplesmente não aceitou estar enferma. E mesmo nominada de pandemia, esta patologia chamo pelo nome: Ódio. As pessoas doentes de ódio foram contaminando outras, às vezes sem perceberem, muitas vezes com intenção. Milhões pelo ódio foram mortos, direta e indiretamente. E o pior nível da doença foi quando os doentes de ódio começaram a odiar os que não estão pelo ódio contaminados, como se os doentes fôssemos nós. Quanto a mim, ainda contemplo à esperança pelas janelas, abraçando cada porção de amor que me resta, curando-me antes mesmo que eu pudesse adoecer e tentando curar quem eu posso.

Por Geraldo Ramiere

domingo, 28 de junho de 2020

ANCESTRALIDADES

Tenho tantas origens
Quanto marcas na pele
E cada uma delas

Possuem histórias
Que atravessam eras
Fronteiras e mares
Algumas continuando
Abertas feito feridas
Expostas e doídas
Sobre as superfícies
Levemente ásperas
Da memória e do tempo

Quando fecho os olhos
Consigo escutar
Cantigas, cantares e vozes
Antepassados que hoje
Em minha cabeça
Orientam meus caminhos

Geraldo Ramiere


     IMAGEM: pintura de Darla Nelson

LETRA POR LETRA



LETRA POR LETRA

Como diz o ditado

Se eles ditam a ditadura
Nós ditaremos a poesia

Se eles gritam a escravatura
Nós soletraremos a alforria

Se eles defendem a tortura
Nós confessaremos a alegria

Se eles semeiam a amargura
Nós adoçaremos a melancolia

Se eles atacam nossa cultura
Nós a defenderemos com maestria

Geraldo Ramiere

NO BALÉ DA REALIDADE CISNES NEGROS SÃO BALEADOS

Foram mais de oitenta tiros
Contra uma família inocente
Negra, num carro branco

Mataram o pai músico
E um rapaz que tentou ajudar
“Foi engano”, disseram os militares
Assassinaram uma menina
Ela tinha oito anos
"Fazia balé", disse o avô
“Houve confronto”, falaram os PMs
Morreu com tiro de fuzil
Era negra também

Um músico, uma bailarina
Que não mais farão arte
Igual há tantas e tantos
Mortos por causa da pele
Que talvez seriam cisnes negros
Um Cruz e Sousa, uma Clementina
Elza Soares, Mano Brown, Elisa Lucinda
Junto com outros e outras artistas
Dando um baile nas estatísticas
Mas que ainda são exceções
Porque no Brasil, balas perdidas
Tem na cor preta alvo tradicional

Num certo dia, eu, ser crítico
Consciente das minhas raízes
Estava num ônibus quando
Entraram dois jovens negros
Cuja simples presença deixou
Todos os passageiros tensos
Inclusive a mim, sim, a mim
Foi quando as Carolinas de Jesus
Dos meus quartos de despejo
Protestaram: “moço, você foi racista!”
E desde então admito que ainda
Tenho senzalas para libertar


Geraldo Ramiere


















IMAGEM: pintura de Wilson Tiberio.

sábado, 27 de junho de 2020

NA LITERÁRIA TRAVESSIA DE VIVER


Na literária travessia de viver/ Pelos precipícios das páginas em branco/ Escrevemos um novo dia a cada passo

Geraldo Ramiere

A CIDADE E AS NUVENS - Brasília 60 anos de poderes, pesares e poesia.

IMAGEM: Construção de Brasília - foto de Alberto Ferreira (editada).

A CIDADE E AS NUVENS

Dos céus que arranham
Com dedos de nuvens
Os pés suspensos
E sonhos indissolutos
Refletimos ao cair
Nos espelhos d'água
Olhares esquecidos
Ainda a construir

Brasília chove
Sobre nossa aridez
E sua parte perdida
Que dentro de nós
Habita clandestina
Agora sussurra raios
E lágrimas com cheiro
De terra molhada

Geraldo Ramiere

29 DE FEVEREIRO

IMAGEM: Arte de Igor Morski
Nasci no vigésimo nono dia de fevereiro de um ano qualquer. Lembro-me nitidamente daquela manhã e do rosto da minha mãe, passando até quase meia-noite sem saber o que faria comigo, até me abandonar na porta de um monastério. Depois consigo me lembrar apenas de quando fiz quatro anos e que no orfanato fui o único a ganhar um bolo sozinho, porque nenhuma outra criança além de mim fazia anos naquela data. E desde então, não sei por qual motivo, em minha memória todos os dias são como se não tivessem existidos, exceto os do meu aniversário. Porém tenho certeza que existiram. Do dia que fiz oito anos lembro-me de que finalmente fui adotado, por um casal de idosos sem filhos; sempre senti saudade daquele momento em que tive um quarto pela vez só para mim. Do dia que fiz doze anos lembro-me que dei meu primeiro beijo, numa criança uma semana mais nova do que eu, depois de passarmos o dia inteiro brincando no quintal. Do dia que fiz dezesseis anos lembro-me que fiz amor pela primeira vez, numa noite de festa e embriaguez. Do dia que fiz vinte anos lembro-me de estar no velório dos meus pais, mortos pela velhice e enterrados juntos. Do dia que fiz vinte e quatro anos lembro-me da minha formatura na faculdade e da tristeza de não ter nenhum familiar por lá. Do dia que fiz vinte e oito anos lembro-me que era também o dia do meu casamento e que deixei cair minha aliança, tamanho era meu nervosismo. Do dia que fiz trinta e dois anos nunca me esquecerei, pois foi quando segurei minha filha nos braços assim que nasceu; o dia mais feliz da minha vida, mesmo com o receio dela ser igual a mim. Do dia que fiz trinta e seis anos lembro-me de um pôr do sol na praia com minha família e como desejei que aquilo durasse pra sempre. Do dia que fiz quarenta anos lembro-me que chorei o dia inteiro em silêncio após me divorciar. Do dia que fiz quarenta e quatro anos lembro-me que descobri minha doença e me deram poucos meses de vida. E hoje, ao fazer quarenta e oito anos, mesmo sabendo que será meu último dia, estou sorrindo, porque apesar de este ser apenas o décimo segundo dia de vida em memória de fragmentos, sinto-me como tivesse vivido séculos, por ter tido uma vida completamente plena.

Por Geraldo Ramiere

ASSOMBRAMENTOS

"Desaparecia-se/ Desaparecia-se muito naqueles dias"
                                       Afonso Romano de Sant’Anna


E os desaparecidos reapareceram
Repentinamente, por todos os lugares
Que desapareceram por anos ou dias
Parecendo que nunca mais voltariam
Pessoas que até teriam morrido
Ou ao menos isso que pensaram
Sem prévio aviso de súbito surgiam
E reaparecidos agora eram
Num assombro sob sombras
Suscitando ao mesmo tempo
Alívios e alegrias naqueles
Que ainda os procuravam
Como também espanto e desespero
Nos que tinham seus desaparecidos
Há tempos enterrados
Foi quando também subitamente
Os outrora aparecidos começaram
A desaparecer, pouco a pouco

Desde então assim vivemos
Com nossos antes desaparecidos
Sem sabermos quando nós mesmos
Desapareceremos, incluindo eu
Um dos poucos remanescentes
Escrevo este poema já consciente
De que quando menos esperar
Desaparecerei também
Completamente


Geraldo Ramiere

    IMAGEM: Pintura de René Magritte.

sexta-feira, 26 de junho de 2020

ANATOMIA DO INTOCÁVEL

Se alma de fato existe
Creio que ela tem
A forma de um poema
Que se escreve
Verso por verso
Livre e infinitamente
A cada novo dia
Continuando a compor
Sua própria poesia


Geraldo Ramiere



     IMAGEM: pintura de Vladimir Kush

quinta-feira, 25 de junho de 2020

LITERÁRIA CONURBAÇÃO

IMAGEM: pintura de Jacek Yerka

Escrever é expandir as cidades
que habitam dentro de nós
despovoando nossas mentes
para que outros possam nelas
encontrar novas moradas
numa literária conurbação
onde invenção e realidade
unem-se formando
uma realidade só.

Geraldo Ramiere

O ÚLTIMO POEMA DO ANO

Nas páginas em branco
Das penúltimas horas do ano
Escreve-se o último poema

Em versos tingidos pelo tempo
De cada instante que se esgota
Como se terminasse um livro

E feito alguém que sabe
O exato momento de sua morte
O ano observa seu último poema
Despedindo-se pouco a pouco
E sendo, agora, ambiguamente
Epitáfio e esperança

Geraldo Ramiere




IMAGEM: Cartaz do filme "O Último Poema" - direção Mirela Kruel

quarta-feira, 24 de junho de 2020

ESPELEOLOGIA

Foi por acaso que descobri minha primeira caverna
Ainda criança ao caminhar perdido e sozinho
Recordo-me que tive medo, mas mesmo assim entrei

Iluminado apenas pela lanterna que trazia comigo
Em minha lembrança ficou o cheiro daquele lugar
E de como estava admirado com tamanha descoberta
Encontrando-me onde ninguém nunca esteve antes
Desde então dela fiz abrigo e esconderijo
Para qual ia sempre quando queria fugir lá de fora

Ao passar dos anos fui descobrindo outras cavernas
Que nunca imaginei existirem em meu interior
Com estalactites de lágrimas acumuladas pelo tempo
Principalmente das minhas rochas sentimentais
Mas também em meus mares e terras glaciais
Cada vez mais profundas, tanto que algumas
Ainda hoje tenho receio de ir até seu fim
E à medida que fico mais velho
Percebo que outras cavernas vão surgindo
Pela força das águas que passam em mim
Ou após os terremotos e vulcões no meu peito

Nessa minha exploração encontrei cavernas
Onde havia seres viventes, a maioria sobrevivendo
Sem nunca terem conhecido a luz do sol
Contudo, o que mais me surpreendeu
Foi descobrir algumas há muito tempo habitadas
Com imagens rupestres e até manuscritos
Então atônito me ative que elas eram
Ou já foram também de outras pessoas
E através delas estamos todos interligados
Neste mundo subterrâneo que até agora
Nenhuma geologia da alma conseguiu explicar

Assim meu ser telúrico se perde e encontra
Continuando a procurar por novas cavernas
Por entre fendas e brechas, sempre a ouvir
Os ecos que ressoam pelos vazios


Geraldo Ramiere



IMAGEM: fotografia interna da caverna búlgara de Prohodna, que possuí dois "olhos abertos" no teto.

domingo, 21 de junho de 2020

ÁRVORES DO SOL

IMAGEM: Ipê-amarelo da cidade de Planaltina-DF


ÁRVORES DO SOL
À minha irmã Débora, que ama ipês


Quando o sol está triste
Derrama lágrimas no chão
Sementes sob a terra
Brotando sem lamentação
Árvores que também choram
Folhas caídas, depois então
Amarelas estrelas afloram
Primavera em anunciação
Toda vez que as vejo
Recordo-me da tua cor
Dourada e das tardes
Despedindo-se ao ser pôr
E aos pés dos ipês
Nos protegemos do calor
Fortes são as raízes
Dos iluminados pelo amor

Geraldo Ramiere


MECENAS


IMAGEM: pintura Músicos de Rua, do artista plástico português Rui Carruço.

Enquanto tocava, permanecia olhando para o chapéu no chão. Mesmo com a música e o barulho dos passantes, conseguia ouvir o tilintar das poucas moedas dadas. De repente viu o silencioso gesto de alguém depositando algo. Uma nota. Não era alta, mas era a primeira daquela tarde. Mesmo se fosse a única do dia, já se sentia reconhecido de algum modo. Levantou o rosto e com um sorriso agradeceu ao pagante, sem parar de tocar. E o mendigo lhe respondeu com outro.

Por Geraldo Ramiere

sábado, 20 de junho de 2020

UMA ESPAÇONAVE PARA O PEQUENO PRÍNCIPE



UMA ESPAÇONAVE PARA O PEQUENO PRÍNCIPE



Com os grãos das areias do deserto
Misturado com a poeira das estrelas
E com que sobrou do meu avião
Pra ti construí uma espaçonave 
Para que possa vir sempre nos visitar
Retornando ao teu planeta, sem preocupação
E explorar outros asteroides, se por acaso
Outra vez entristecer com tua flor

Falando em tristeza, ontem e noutras vezes
Assisti ao pôr do sol, e pensei em você

Geraldo Ramiere

SEUS OLHOS RASCUNHANDO SONHOS

É quando estás acordada que consigo enxergar
Seus olhos rascunhando sonhos, por detrás da íris
Sob os arcos oníricos das portas que se abrem

Para dentro, por fechaduras e entre as frestas
Vejo o que escreves lentamente na neblina
São seus olhos rascunhando sonhos
Manuscritos em belas letras imaginadas
Pelas perenes percepções imperturbáveis
Semelhantes ao repouso no leito de Morfeu
Após a deusa Maya retirar os véus
E somente agora descubro que sou eu
Em seus olhos rascunhando sonhos
Adormecido sobre esses braços de poesia
Que com versos vela meu sono


Geraldo Ramiere



          IMAGEM: pintura de Jim Warren

sexta-feira, 19 de junho de 2020

NAU DE ESTRELAS


Atravessando nuvens navego
Por sidéreos mares
De águas cósmicas
E marés celestes
Numa nau de estrelas
Caravela de constelações
Em busca de novas galáxias
Nos oceanos das noites
Escuras dos meus olhos
Cintilantes em claro
Tão alto que consigo me ver
Mesmo na maior imensidão

Testemunhei naufrágios
Meteoros em tempestades
E buracos negros
Sugando tudo ao redor
Mas quando estive à deriva
No vazio quase a me afogar
Pelos teus astrolábios
Tracei rotas desconhecidas
Viajando agora pra aonde
Ninguém jamais foi
Entre pulsares e nebulosas
Fazendo de bússola o coração

Geraldo Ramiere



IMAGEM: pintura de Cristian Schloe

PRIMAVERA NA GENTE


PRIMAVERA NA GENTE


Por dentro desperta
Lentamente
A primeira flor
O que outrora era
Desfolhado e seco
Sútil desabrochar
Na gente, a cada
Nova pétala
Mesmo antes
Da primeira chuva
Quando percebemos
Já estamos em
Completa floração
E uma primavera
Recomeça em nós

Geraldo Ramiere

IMAGEM: Arte de Marcelo Monreal

quinta-feira, 18 de junho de 2020

DEPOIS DE DERRUBAR A DERRADEIRA ÁRVORE

Quando queimarmos todas as florestas
E cada folha for uma lágrima de fogo
Quando matarmos todas as matas

E derrubarmos a derradeira árvore
Qual outra natureza assassinaremos?
O que mais iremos desmatar e destruir?

Depois de derrubar a derradeira árvore
E restar apenas um devastador vazio
Quem culparemos por nossa desgraça?
Perante um planeta que já perecia
Permanecemos ignorando o que nos dizia
Implorando socorro por sinais de fumaça

Pode ser que nossas faces de ganância
Fiquem melhores respirando em máscaras
E depois de derrubar a derradeira árvore
O que ainda houver de verde e as cores
Destoantes do cinza, talvez sejam vistas
Com envergonhados e vorazes olhares

E quando juntos aos demais animais
Já estivermos quase sendo extintos
Pra que nos servirá poder e dinheiro?
Para quem tantos bens deixaremos?
Se o maior dos males já fizemos
Depois de derrubar a derradeira árvore


Geraldo Ramiere



COLHEITA

IMAGEM: foto - Construção de Brasília - fonte: Arquivo Nacional


Onde sapatos

Lustrados e arrogantes

Pisam, repisam
Onde poderosos
Elaboram leis
E governam o país
Homens simples
Com sonhos retirantes
De botas sujas
E mãos nuas
Estão plantados
Sementes involuntárias
Nesta lavoura
De concreto e metal

Ali
Sonhos simples
De homens retirantes
Erguiam prédios
Como quem arava
A terra mais seca
Subiam aos céus
Asas de andaime
Comer nuvens
Dormir trabalho
Entre ser nada
Ou pouca coisa
Cumprir ordens
De repente o salto
De repente o fundo
De repente se esquece
E cimento

Debaixo dos pés
De homens poderosos
Que pisam, repisam
Permanecem semeados
Sonhos retirantes
Sob cada hora
De outros sonhos
Retirados, removidos
Jogados ao chão
Mas lá, logo ali
Poucos percebem
Que o esquecido
Rompe o concreto
Lento e discretamente
Brotando indiferente
Aos que pisam
E ao poder

Chegaremos ao dia
Que todos verão
Crescer imensamente
Brotando do concreto
Cobrindo o Congresso
Algo que chamarão
De planta nova
Mistura de cerrado
Com sertão
E logo descobrirão
Que na verdade
São apenas
Sonhos germinados
Há anos esperando
Serem colhidos
E colhidos serão
Aqui


Geraldo Ramiere

Tradutor