sexta-feira, 29 de maio de 2020

DOADOR

Já falei para minha família e próximos
Quando eu falecer, doem meus órgãos
Mas por garantia escrevi este poema
Para mim é bem mais barato e seguro
Do que fazer um documento ou novo RG

Doem meu pulmão, pâncreas e intestino
Meu fígado e rins (se prestarem ainda)
E esta pele e olhos, com seus segredos
Podem doar também minhas inquietudes
Sensibilidade, charme e piadas sem graça
Além de meus sonhos, realizados ou não
Doem tudo que tiver alguma serventia
E que outros precisem e não irei mais usar
Só não doem este meu complicado coração
Que contêm tanta coisa dentro que nem sei
Seria arriscado demais se batesse noutro peito
Quero que ele e o que mais restar virem cinzas
Para serem espalhadas aos ventos por aí
Juntamente com meus versos e vontades

Geraldo Ramiere




Acertando os ponteiros do coração...


POÉTICA


Discretamente entrou no salão
De repente sacou um poema
Disparando vários versos
Ouviram-se berros e correria
Houve pânico geral
Alguns se abaixaram
Muitos saíram feridos
E engravatados
Foram atingidos mortalmente
Por fim atirou em si mesmo
O último verso
E seu corpo explodiu em rimas
Que gritaram pelo ar

Geraldo Ramiere


MINHA ESCRITA É SACRIFÍCIO

Não escrevo por exibição ou deleite. Nem por mera vaidade. Minha escrita é sacrifício. Dos sentimentos e palavras faço oferendas. Derramo seus sangues sobre a terra faminta das minhas tormentas para sacia-la e em meu fogo queimo-as até às cinzas para acalmar o que me devora. Na inspiração de seus odores entro em transe. Assim escrevo versos. Assim escrevo histórias. Escrevo por consequência. Escrevo porque assim sobrevivo. A literatura é meu ritual de sobrevivência. Sei porém que quando palavras e sentimentos já não bastarem, quando a voragem não puder ser mais contida, serei meu próprio sacrifício. Ao menos dessa forma, finalmente estarei livro. Geraldo Ramiere




IMAGEM: pintura de Vladimir Kush


terça-feira, 26 de maio de 2020

PROMETEU

Das promessas que se apagavam
Antes mesmo de acender
Dos fogos que mal iluminavam
E não conseguiam lhe aquecer
Cansou-se, como quem se cansa
Dessas histórias sem finais
E foi-se pela rua que chama
Arder em seus próprios sinais

O amarelo que da boca flama
No vermelho é a cor rente
De mais um solitário artista
Com brilho queimado em instantes
Num mundo que pira todo dia
E adeuses fazem-lhe se sentir
Um pouco Hefestos
Outro pouco Prometeu

Sob as luzes das madrugadas
Ofuscadas pelo seu incendiar
Dormia, sem saber que a cidade
É ave que vive a lhe devorar
Mas amanhã haverá outro palco
Que o trânsito irá montar
Para alguém que tanto ilumina
Porém, seu próprio nome esqueceu

Geraldo Ramiere


ANCESTRALIDADES

Tenho tantas origens
Quanto marcas na pele
E cada uma delas

Possuem histórias
Que atravessam eras
Fronteiras e mares
Algumas continuando
Abertas feito feridas
Expostas e doídas
Sobre as superfícies
Levemente ásperas
Da memória e do tempo

Quando fecho os olhos
Consigo escutar
Cantigas, cantares e vozes
Antepassados que hoje
Em minha cabeça
Orientam meus caminhos

Geraldo Ramiere



IMAGEM: pintura de Darla Nelson

EDUCADOR

   Para todxs educadores, hoje e sempre!


APRENDIZAGENS



Para de fato ser educador
É preciso primeiro
Educar a própria dor
A de dentro de ti
E a dos outros
E a de nunca saber
Se quem ensinas será
Quem também irá semear
Ou quem impedirá colher
Por isso ensinar é, sobretudo,
Aprender a não prender
E reconhecer publicamente
Que cultivamos também
O que não conseguiremos
Jamais compreender

Geraldo Ramiere

A LITERATURA É UMA DEUSA

    
    A Literatura é uma deusa
    De diversos nomes
    Que quando cultuada
    Possui o ser humano que quiser

    Geraldo Ramiere
 TODO POEMA QUER SER MÚSICA

Como toda boca quer ser riso
Todo navegar quer ser preciso
Toda canção quer ser lirismo
Todo poema quer ser música
Como todo escravo quer ser livre
Toda palavra quer ser livro
Todo ímpar quer ser par
Toda saudade quer se acabar

Todo poema quer ser música
Nem que seja pela metade
Ou mesmo num verso isolado
Todo poema quer ser cantado
Por pandeiros ou guitarras distorcidas
Por trovadores ou orquestras alinhadas
Por tenores ou uma voz desafinada
Toda poesia quer ser sarau

Como todo afeto quer ser amor
Todo disco quer ser voador
Toda pétala quer ser florais
Toda despedida ser logo mais
Todo poema quer ser música
Toda poesia quer ser cantada
Como toda dor quer ser dormente
Sendo verdadeira sem doer

Pode ser em palcos ou num chuveiro
Pode ser de graça ou por dinheiro
Por minutos ou por um ano inteiro
Todo poema quer ser música
Toda poesia quer ser cantada
Como toda tarde quer ser manhã
Como toda máquina quer ser tecelã
Como todo querer quer se realizar

Geraldo Ramiere

ARTE: Pintura de Vladimir Kush




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