quarta-feira, 13 de setembro de 2017

O CANTO DOS UTÓPICOS

O CANTO DOS UTÓPICOS

Não nos calarão
Mesmo que arranquem todas as vozes
E emudeçam todos os olhos
Mesmo que enterrem a história
E digam que tudo mais está morto
Não, não nos calarão
Pois assim é nosso canto
Um canto feito não apenas
De versos e cordas vocais
Mas sobretudo
De desejos e braços
Necessidades e pés
Estômagos, sentidos e corações
Este canto há tempos cantado
Ecoado por eras
Entre manhãs incandescentes
E noites luminosas
Está em nós
Nas vozes de muitas e muitos
Nossos sonhos são nosso canto
Por isso, não nos calarão
Nem as botas dos batalhões
Ou a tirania dos poucos
Em golpes e retrocessos
Serão capazes de esmagar
Este nosso grito
Este nosso canto
Que disfarça-se de silêncio
Sobrevoa telhados
Camuflado entre nuvens
Para depois entoar
Como chuva de primavera
O reflorescer dos que não desistem
Este é o nosso canto
Que também é lugar
Um país, uma cidade, uma casa
Qualquer morada
Onde nos encontramos
E unidos, cantamos, juntos
Por liberdade


  Geraldo Ramiere

IMAGEM: Ciranda

A AMEAÇA Miniconto



A AMEAÇA
Aquela caixa abandonada logo levantou suspeita. A polícia chegou isolando o local. Equipe anti-bomba. Helicóptero. Noticiários ao vivo. Uma multidão ao redor. Foi fácil abri-la. Não houve explosão. Averiguaram o conteúdo. Eram só meus sonhos. Que esqueci por lá.                                  
                                                               GERALDO RAMIERE               

 

COM AS PEDRAS ESCREVO CAMINHOS
COM AS PEDRAS QUE APANHO
PELOS CAMINHOS
ESCREVO POEMAS E PRESSÁGIOS
NO PONTO MAIS ALTO DO CORAÇÃO
EDIFICO MINHA MEMÓRIA 


Geraldo Ramiere

      Imagem: foto de Rud Boing 

* Poema escrito para Planaltina-DF, minha cidade, dias antes do teu aniversário de 157 anos, ocorrido em 19 de agosto. Escrevi estes versos com pedras na Pedra Fundamental (marco da Construção de Brasília e um dos nossos maiores símbolos da cidade) tanto como inicio de um projeto de poesia urbana quanto protesto silencioso contra o descaso com nosso patrimônio histórico cultural. Com as pedras foram apenas alguns versos, mas o poema completo deixo aqui para vocês.




                                                        

Escritos de Uma Cápsula do Tempo #8 VELOZ


VELOZ

Corria. Não possuía qualquer motivo especial para isso, mas mesmo assim corria. Na calçada do parque num domingo qualquer, sob o sol de uma tarde comum, ultrapassando passantes com a facilidade de um driblador. Correr por pura e simples vontade. Correr apenas por correr. Sentir em seus músculos exaltados o esforço do movimento contínuo e no rosto o vento batendo cortante. O indispensável ritmo ininterrupto dos braços impulsionando a corrida. A respiração mantida em cadência. Pensamentos focalizados num único objetivo. Correr. Correr. Correr. Correr... Nem o lento cair de folhas roubava sua concentração. Na mente apenas um desejo: se superar, desafiar o corpo até seus limites, senti-lo em toda sua plenitude, saber o quanto poderia aguentar. Duelava consigo mesmo. Um combate silencioso, mas que não deixava de ser combate. E mesmo que tentasse explicar isso, ninguém iria entender. Então, apenas corria. Silenciosamente. Sem parar. E era isso que lhe importava no momento. Ele corre. Limpa a saliva que escorria nos lábios. Aumenta a velocidade. Os cabelos começam a ficar úmidos. Corre. Resistir ao determinado antes que tudo se resuma em apenas cansaço. Rápido, cada vez mais rápido. Acreditar no oposto mesmo que o que resta seja tão escasso. Algum conhecido lhe acenou. Sobreviver. A paisagem passando cada vez mais depressa diante dos seus olhos fixos. Todos lhe abrem caminho. Tinha consciência de que não poderia derrotar a dor no momento presente, mas desejava pelo menos revidá-la, com um golpe, um ataque, qualquer suspiro, ao menos enfrentá-la. O coração bate acelerado. Enfrentava-a. Corre. Um ciclista tenta acompanhá-lo sem conseguir. Uma bola perdida raspa sua cabeça. Quase atropela um poodle com sua madame. Espantou um bando de pombos. Corre. A respiração ofegante. A garganta seca. A blusa encharcada de suor. O corpo exausto. Suas mãos doem. Mas não pára. Corre. Corre. Corre. Correndo para sobreviver. Sobreviver ao passado, aos erros, ao desastre, à dor. Desenterrar a força ocultada pelo áspero. Esquecer. Ir para longe. Bem longe. Longe de tudo. Correr para perto de si. Havia agora apenas ele contra ele mesmo. Sua revanche contra o que se impunha destino. Correr. De repente surge uma ladeira. Descia descontrolado. O coração em disparada. Não tinha como parar. Veloz. Muito veloz. Velocíssimo. Mas não sentia medo. Nenhum medo. Sentia-se como há tempos não se sentia. Sentia-se livre. E quando uma pedra bateu contra a sua cadeira de rodas, lançando-o ao longe, rolou pela calçada à fora até cair estirado no chão. Permaneceu assim por alguns instantes. Algumas pessoas se aproximaram para socorrê-lo. Outras só espiavam. Mas antes que alguém pudesse fazer algo, ele levantou a cabeça, olhou em volta, e riu, um riso estridente, ecoante, elástico, solto. Um riso de alegria. Perdoou-se.

Geraldo Ramiere

* conto escrito em 2006 - original sem alterações

IMAGEM: arte de Cris Rivera

Escritos de Uma Cápsula do Tempo #7 RECONTAR

RECONTAR
(Geraldo Ramiere)

Às vezes não sei se estou morto ou vivo
Feito Zacarias em pirotécnica confusão
Às vezes me encontro solitário e esquecido
Feito Dario só com uma vela na mão

Às vezes fico falante de histórias contador
Feito Alexandre sem saber que é herói
E é melhor sinhô não mexer comigo
Tenho corpo fechado feito Manuel Fulô

Sheharazade, sei que você já sabia
Que pra viver é preciso recontar
Sheharazade...


São golpes de Machado na casca da rotina
São luzes de Clarice esclarecendo escuridões
São os bailes de Lygia, a ilha de José
São casos e causos, é aquilo que não é

Sheharazade, sei que você já sabia
Que viver é um eterno recontar
Sheharazade...


Sou amigo de João Grilo, sou da taverna
Sou sagarano, sou narração de cordel
Lendas sob a fogueira, lembranças de avós
Cores coralinas com cheiro de casa velha

Sheharazade, sei que você já sabia 

Que pra viver é preciso recontar
Sheharazade...


São noites russas, são fantasmas de Dickens
São gatos ocultos e um coração denunciador
São fatos e fábulas, inícios sem finais
É Esopo soltando nossos animais


Sheharazade, sei que você já sabia
Que viver é um eterno recontar
Cores cortazares...


Mesmo se desarranjada for minha cabeça
Eu que não a troco por uma de papelão
E às vezes sei que sou um personagem
Que alguém ainda não escreveu


Sheharazade, sei que você já sabia
Que pra viver é preciso recontar


Sheharazade, sei que você já sabia 

Que viver é um eterno recontar 

Sheharazade, sei que você já sabia
Que nós somos personagens...




IMAGEM: Jeremiah D. Morelli

Tradutor