sexta-feira, 18 de agosto de 2017

Escritos de Uma Cápsula do Tempo #6 LIVREMENTE

 LIVREMENTE
Mesmo se a cabeça dói
Minha mente continua
Livre e verdadeira
Apesar de tantas mentiras
E maldades, preconceitos
Que destroem vidas inteiras
São as reais enfermidades
Que aprisionam as pessoas

Mesmo se a cabeça dói
Minha mente continua
Livre e verdadeira
Ignorando tanta asneira
Pés descalços dançam
Pisando na grama ou na areia
Movidos pela música
Que segue o ritmo do coração 

Se tua cabeça dói
Doe-se de alguma maneira
Na primeira chance
Porque pode ser a derradeira
Pois a falta e o desperdício
São os que provocam a dor 

E numa dessas noites pretas
Talvez possa ser que a gente parta
Sem despedida ou explicação
Seguindo os passos, ventanias
Mas que nada, a estrada
Da partida é a mesma da chegada 

Mesmo se a cabeça dói
Bem mais do que livre
Amor tem é que libertar
Livre a mente e tudo que se sente
E se toda festa é um “reggae”
Bora regguear, vamos regguear
Mas guarde esse beijo pra mim 

 

Geraldo Ramiere


* letra escrita há dois anos atrás que até hoje ninguém musico; para quem se interessar, fica o convite.
 
IMAGEM: pintura de Christian Schloe

Escritos de Uma Cápsula do Tempo #5 AGOSTO NA GARGANTA


AGOSTO NA GARGANTA

Queimarei versos na primavera
Feito o sol com as flores do cerrado
E a tristeza incendiária que desmata
Com guimbas de olhos sempre acessos

Queimarei versos na primavera
Devastando estrofes e rimas
E depois invadirei os terrenos
Deixados pelas páginas acinzentadas

Queimarei versos na primavera
Para que nunca esqueçamos
Nunca nos esqueçamos de agosto
Com nossas retinas, línguas, peles
Vozes, desejos e lamentações
Estejamos sempre em agosto
Secos, retorcidos e fortes
Reflorescendo sem estação
Mesmo que o tempo nos seduza
Com suas enganações de chuva

Queimarei versos na primavera
E com rimas inacabadas
Semearei flores nas nuvens
Ainda grávidas de tempestades

Geraldo Ramiere
* poema escrito em 2012, tipicamente brasiliense. 





quinta-feira, 10 de agosto de 2017

Escritos de Uma Cápsula do Tempo #4 SEU DORSO NU

SEU DORSO NU (Geraldo Ramiere)

Antes que pudesse ser retido por alguma súbita hesitação, enxugou os óculos molhados pela chuva, e após o instintivo gesto de destrancar a porta, pôde sentir o brusco tépido ar do apartamento lhe bater na fronte. Vagarosamente tirou a jaqueta ensopada, tendo cuidado para não produzir qualquer barulho. Sentou-se no sofá. O vão ato dos olhos em vasculhar a limitada extensão dos cômodos escuros em busca de algum movimento apenas aumentou-lhe o desencanto. Como dissimular a angústia tendo consciência da imprevisibilidade de qualquer acontecimento posterior? O quase automático movimento das mãos à boca escolheu o cigarro como opção momentânea mais prudente. Não conseguiu deixar de fitar novamente a atadura que envolvia a mão talhada. Uma velha música rasgava a taciturnidade da noite até chegar aos seus ouvidos, redesencadeando uma melancolia outrora coloidal. Com o circungirar da cabeça pode perceber que a porta do seu quarto mantinha-se fechada. O filtro umedecia-se nos lábios salivantes. "Será que ela está dormindo?". Por entre a tênue cortina de fumaça tentava se esconder da escuridão implacável. O que seria mais sensato: desafiar a tranquilidade aparente mexendo na ferida ainda não cicatrizada ou deixar o cenário antes que fosse engolido pela mágoa transbordante? Uma repentina luz lunar lustrou a aliança na mão trêmula. "Por que persistir?". O ato de abaixar a cabeça em nova reflexão levou seu olhar à fotografia no porta-retrato despedaçado ao chão. O amargo na garganta seca inibiu a continuidade dos pensamentos. "- Dane-se!". Lançou o toco queimado pela janela, levantando-se rumo ao dormitório. "- Abra a porta", disse ao término de três batidas sucessivas. Nenhuma resposta. "- Abra!". Esmurrou o umbral após o berro. Silêncio. Não sabe quanto tempo manteve a cabeça inerte na porta. Desistindo de qualquer nova insistência, arrombou-a num único ímpeto. Pôde sentir o forte impacto da madeira contra seu ombro. Recuperando o raciocínio, conseguiu mirar o corpo feminino sobre os lençóis amarrotados. "- Precisamos conversar". O único ruído ouvível era da sua respiração espaçada. "- Precisamos conversar", repetiu, elevando a voz. Ela continuava muda. Aproximou-se lentamente. Percebeu que estava descoberta da cintura para cima. "- Acorda", falava em tom grave. Apenas uma peça íntima impedia a nudez total. "- Acorda. Precisamos conversar”, insistia. Seu rosto conservava-se imerso na almofada. "- Acorda!", gritava. Mantinha-se inerte. Movido pelo impulso de ira, projetou-se para virá-la, mas interrompeu o movimento ao sentir a gelidez do corpo; Não soube muito bem o que pensar, até que sua atenção pousou no frasco de remédios esvaziado sobre a mesa. Suspirava, sem conseguir concatenar nenhum sentimento concreto. Permaneceu em pé por mais alguns segundos. Observava-a, ainda de longe, tentando entender o óbvio. Finalmente reaproximou-se, sentando-se no colchão. Contemplava suas costas desnudas. Depois de um instante, arriscou um toque. Tentava se acostumar com a inexistência de calor. Notando que a pele permanecera macia, continuava o lento tatear de dedos sobre a delimitada dimensão despida. Já controlado o receio anterior, beijou-a, bem devagar. Repetia o gesto várias vezes, seguindo a linha traçada pela espinha. Chegou próximo ao pescoço. Embriagava-se no perfume que persistia nos cabelos. Olhou-a morta novamente, e após um suspiro, manteve a face sobre a carne nua. Não quis encarar seu rosto. Tinha medo dos seus olhos. Permaneceu assim. E mesmo com todo esforço, não conseguia chorar.





* conto escrito em 2005 (versão atual com adaptações)



IMAGEM: Pintura de Rodholfo Amoedo

Escritos de Uma Cápsula do Tempo #3 MUTILADOS CIDADÃOS MODERNOS

MUTILADOS CIDADÃOS MODERNOS
Jogaram pedaços pelas janelas

Muitos e muitos pedaços
Ainda pulsantes e ensanguentados 
Mãos, pés, pernas, orelhas, narizes,
Olhos, cabeças, ventres, genitálias...
Lançados dos altíssimos prédios 
Na avenida, nos transeuntes, que apressadamente atravessavam a avenida
Jogavam pedaços pelas janelas
De mulheres e homens, andróginos pedaços 
Continuando a cair sobre os passantes 
Sempre seguindo a sinfonia de ruídos 
Buzinas, rangidos, teclados, gritos, suspiros ofegantes...
Hipnotizados robóticos caminhantes 
Sem cessar jogavam pedaços pelas janelas
Na multidão, na avenida, atingidos por seus próprios pedaços 
Um braço caiu num carro, um pescoço numa vitrine
Um fígado descamba no semáforo, um rim num outdoor 
Um siliconado seio espatifa-se ao bater no meio-fio
Sobre apressados, na avenida, inúmeros pedaços 
Mas eles nada disso percebem 
Prosseguindo em seus caminhos 
Despedaçamente indiferentes
Apedaçados, mutilados, mulheres e homens 
Parece que ja se acostumaram com o sangue, seu sangue
Parece que ninguém vê isso 
Que somente eu, bestificado, parei
Só eu me assusto e olho pro alto
Só eu continuo limpo...
Até que um pedaço me atingi
Um coração, meu arrancando coração de homem 
Foi quando no mesmo instante 
Subitamente surgiu uma criança cega
Que mantinha-se limpa, apesar de tanto sangue Me sorriu, catou meu coração e foi-se embora
Nao sei quem, mas do alto jogavam pedaços 
De mulheres e homens, atravessando a avenida
Apressados, seus muitos e muitos pedaços 
Nossos arrancados pedaços pelas janelas...


Geraldo Ramiere
(este poema foi publicado na coletânea "Vozes na Paisagem - antologia de poetas brasileiros contemporâneos" em 2005, pela Edições Galo Branco, mas nesta publicação atual passou por algumas alterações em relação a versão original)


IMAGEM: arte de Hans Bellmer

terça-feira, 8 de agosto de 2017

Escritos De Uma Cápsula do Tempo #2 A VIDRAÇA

A VIDRAÇA (Geraldo Ramiere)

No primeiro dia, apenas observava-o, tranquilamente, parado em pé, de frente ao restaurante, por detrás do vidro. Naquela ocasião o nobre senhor até que estranhou aquele menino de rua sujo e maltrapilho lhe vendo almoçar. Há anos ele sempre comia naquele lugar todos os dias, mesmo depois que aposentou sua farda de major, mas não ligou muito para aquele garoto, continuando sossegadamente sua refeição de sempre. No segundo dia, o menino havia retornado, dessa vez encarando-o diretamente nos olhos, seminu, sem se importar com o frio que fazia lá fora. O velho major, indiferente, apenas desviava o olhar, degustando sua tradicional sopa de carne. No terceiro dia, incomodado por se sentir sob vigia, especialmente no exato momento em que ia morder um pedaço de pão molhado, o major reclamou com o garçom do constrangimento pelo qual passava. O rapaz apenas respondeu que não podia fazer nada, pois a rua era lugar de todos. No quarto dia, o menino novamente estava lá, no mesmo lugar, do mesmo jeito, sempre a olhá-lo, fixamente, profundamente, sem sequer mexer os lábios, como se lhe examinasse. Dessa vez o velho começava a achar engraçada aquela situação, a de ser admirado igual um animal enjaulado, como num circo, sentindo-se até detentor de um certo poder. Saboreando sua sopa, esboçando várias exageradas expressões faciais, ele começou a tentar de tudo para provocar o garoto, até esticar um pedaço de pão ensopado em sua direção, oferecendo-o ironicamente. Porém nada adiantava. Ele permanecia lá, em pé, estático, no mesmíssimo lugar, em vigília, sempre a perscrutá-lo, por detrás do vidro. O major então começou a perceber o quanto estava sendo infantil, coçando os brancos cabelos que denunciavam a velhice. No quinto dia, arrependido do seu comportamento anterior, começava a sentir pena daquele pequeno descamisado, sozinho ao relento. Decidido então em fazer um ato de caridade, mandou que o garçom levasse-lhe um prato de sopa, igual ao seu, tanto para aliviar sua consciência como também por crer que com isso mandaria-o embora, acreditando que era a cobiça por sua comida que o mantinha ali. Mas assustou-se quando percebeu que o prato permanecia no chão, intocado, com ele ainda a olhá-lo, inalterado, cada vez mais profundamente, cada vez com mais firmeza, indo embora apenas, como havia sido até aquele momento, quando o velho também fosse, sempre espreitando-o. Deixou o alimento intacto. No sexto dia, notando outra vez sua presença, sentiu impaciência, depois raiva, por fim ódio. Dessa vez não se rebaixaria, pensou: encarou-lhe olho no olho, aceitando o desafio. Mas o combate durou pouco. Não conseguiu defrontar o olhar por muito tempo com aquele menino que incrivelmente intimidava-o, vendo em seus olhos uma melancolia imensurável, ao mesmo tempo tristeza e acusação. E o que era odiosidade transformou-se em pavor. No sétimo dia, o velho major entrou no mesmo restaurante, na mesma hora, ocupou a mesma mesa, sentou na mesma cadeira e pediu a mesma sopa, repetindo minuciosamente o antigo ritual que sempre seguia. Mas dessa vez tinha vindo preparado: trouxe um antigo porrete, escondido dentro da sua japona militar. Prometeu a si mesmo que esperaria aquele moleque chegar, como de costume, e que correria atrás dele até alcançá-lo, e que o espancaria, até não poder mais, para ensiná-lo a respeitar a paz dos outros. E se acaso isso não adiantasse, se ele ainda insistisse em molestá-lo, jurou que o mataria, com suas próprias mãos. Contudo o pivete ainda não havia chegando. Já estava passando da hora, mas não chegava. O nobre senhor olhava o relógio a todo instante, neuroticamente, mas dele não havia sinal algum. Finalmente desistiu de esperá-lo, olhando a sopa que já tinha esfriado. Sentiu-se decepcionado, mas também livre de um enorme peso. Enfim novamente tomava a sua refeição com tranquilidade, alegremente, calmamente, picando pequenos pedaços de pão, molhando-os antes de levá-los à boca, como sempre fazia, de volta à sua querida rotina. Absorto em seu regozijo, mal conseguiu ouvir os estalos que zuniram sucessivamente: do tiro, da vidraça espatifada, do seu crânio perfurado, produzidos pelo mesmo projétil. A vidraça quebrou-se. Tudo aquilo que separava um do outro se estilhava numa questão de segundos. E entre gritos dos passantes, entre o pavor dos demais fregueses, entre o vômito do garçom e o corpo com a cabeça estourada que insistentemente ainda segurava a colher, havia a sopa: com carne, com miolos, com sangue.
Obs: Este foi meu primeiro conto, escrito em 2002 e publicado pela primeira vez no mesmo ano, num jornal que fazíamos na universidade. Desde então foi publicado em alguns sites e premiado em concursos literários. Há anos deixei em meus guardados. Fiz algumas pequenas alterações no texto original, porém nada de substancial foi mudado.

IMAGEM: foto cuja autoria desconheço

segunda-feira, 7 de agosto de 2017

COM O DEDO NA GARGANTA

Eu queria que minha poesia se transformasse em pão
Para alimentar os que têm fome

Eu queria que minha poesia se transformasse em casa

Para abrigar quem a padece ao relento 

Eu queria que minha poesia se transformasse em coragem

Para libertar os aprisionados pelo medo 
Eu queria que minha poesia se transformasse em afago
Para todos que buscam um pouco de afeto
Eu queria que ela fosse algo real, palpável, degustável, concreto...
Algo mais do que metáforas e rimas, maior do que palavras 
Mas o que a poesia poderia fazer para um trabalhador exausto?
Ou para a mãe que chora a morte de um filho? 
Para quem espera em filas, para quem aguarda vagas
Para quem dorme debaixo de viadutos, para quem não dorme
Para quem se alimenta de lixo, para quem é jogado no lixo
Para quem não tem para onde ir, para quem não tem porque continuar
Para tantos outros que são diariamente roubados, violentados, esquecidos? 
Para quê serviria a poesia para eles? Pra quê serve a poesia?
Se um poema não enche barriga, não aumenta salários
Se um poema não ameniza calos, não acaba com a tortura 
Não retira câncer, não cessa o terror, não traz qualquer cura?
Quem me dera acreditar que minha poesia alivia alguma dor
Quem me dera derrubar cercas e muros com um riso
Quem me dera fechar todas as feridas com meu toque 
Fazer de cada verso um barco, de toda rima um porto
Transformando palavras em plumas, das plumas leito
Onde alheios sonhos descansariam até se tornarem realidades
Que a náusea seja espelho cego para os glorificadores de reflexos
Ao invés de outro escudo para quem reside nas alcovas do silêncio
Retiremos da dúvida a coragem que o nojo esconde por vaidade
Para que quando libertos das nossas correntes de temor e culpa 
Devorados por nossa fraqueza, engasgados com nossas misérias
Com tijolos do quem eram nossos castelos de mediocridade 
Possamos construir caminhos de volta para onde nunca estivemos
E crianças chorarão sementes por entre olhos que sorriem
Trago nestas minhas mãos ocas vários desejos surdos 
Que como feixe de sol que surge por entre grades
São flor que teima brotar em terra árida e estéril
Trago em minha voz rouca um grito mudo 
Abstratos gestos no escuro, um rabisco no muro
Anunciando a luz da manhã de um dia que ainda vem
Trago dentro de mim uma lágrima que não seca
Que é dor e alívio, calma e agonia, vento e chama
Não prometendo nada, e que nada espera de ninguém

Deixo aqui apenas meu testemunho 
Minha canção
                                                     
                                                                            Geraldo Ramiere

IMAGEM: Banksy
Escritos De Uma Cápsula do Tempo#1 - um dos meus primeiros poemas, escrito há mais de 16 anos.

ESCRITOS DE UMA CÁPSULA DO TEMPO

Para iniciar a série de publicações da página, irei postar nesta e na próxima semana textos antigos meus, a maioria escritos há mais de uma década, inéditos guardados nos meus arquivos ou perdidos em antigas publicações de coletâneas e blogs literários. A maioria eu havia até esquecido que existiam e nenhum deles publiquei nem mesmo na minha página pessoal, como se tivessem sido guardados num cápsula do tempo, que apenas agora resolvi abrir.


IMAGEM: 
Cápsula do tempo mais antiga já encontrada, contendo um livro, selada em 1901 e descoberta dentro de um estátua em 2014.

quinta-feira, 3 de agosto de 2017

CÉUS SUBTERRÂNEOS


É onde se escondem os sonhos
Quando não querem ser mais reais
É para aonde vai o tempo
Quando se torna velho demais

É onde descansam medos infantis

Que à noite não conseguiam dormir
Onde palavras de línguas diferentes
Se amam sem temer ninguém
São os céus subterrâneos
Nas alturas profundas do olhar
São os céus subterrâneos
Bem debaixo das nossas mãos

É onde se refugiam os sentimentos
Que foram expulsos do seu país
Onde se abrigam desejos indesejados
Por não serem o que se quis
É para onde vão as lágrimas frágeis
E os sorrisos de outra cor
É onde mora o esquecimento
E donde os devaneios vem em vendavais
E são tantos céus subterrâneos
Adentro de nós 
Nossos céus subterrâneos
Querem e irão se encontrar

Geraldo Ramiere

IMAGEM: Céu de Planaltina-DF visto por outro ângulo (Morro do Centenário/ Pedra Fundamental)

Tradutor