Já estava quase encerrando seu horário quando ligaram para realizar uma última entrega. Somente quando pegou a encomenda viu que o endereço ficava no outro extremo da cidade. Apesar do cansaço e preocupado com o tempo que começava a se fechar numa escuridão cinza, cumpriria aquela tarefa antes de voltar para casa. Com todo cuidado guardou o pacote no porta-objetos da moto, afivelou bem o capacete sobre a nova máscara e seguiu a rota planejada. Por ser fim de tarde pegou justamente a hora do rush.
Através do trânsito intenso acelerava, mas
sem imprudência. Nesses tantos anos como motoboy feriu-se apenas uma única vez
e mesmo assim não foi culpa sua. A barbeiragem de um motorista bêbado que fugiu
sem prestar socorro lhe custou duas costelas quebradas e um mês acamado sem receber
salário. Em seu coração não restava raiva ou rancor, mas desde então sua
cautela era maior do que nunca. Escapava do congestionamento driblando
automóveis feito um bailarino. Com a pandemia os pedidos aumentaram bastante,
ainda mais nestes dias de lockdown, disso não podia reclamar, contudo, a
maioria das pessoas parecia estar mais impaciente do que antes, inclusive no
trânsito, fazendo de cada dia uma batalha diária, a qual enfrentava sem medo.
Seus colegas de profissão ansiavam agitados diante do semáforo enquanto ele aguardava
com calma a abertura do sinal vermelho que jamais furou. Lógico que tinha
receio de ficar doente, principalmente por sua família, porém, no momento não
havia outra opção a não ser trabalhar tomando todos os cuidados e pedir
proteção em suas orações.
Começava a chover com intensidade. Para
chegar mais rápido e fugir de outros engarrafamentos, pegou um atalho que
conhecia. Às vezes pensava em mudar de profissão, sobretudo pelos riscos,
entretanto, sabia que aquele trabalho era muito importante para muitas pessoas,
especialmente naquele momento em que a maioria precisava permanecer em seus
lares o quanto pudesse. Sentia-se honrado por isso. Oculto no buraco camuflado
pela poça d’água, não havia como ver aquele pedaço pontiagudo de vidro rasgando
um dos pneus. Na hora manteve a tranquilidade e, sem frear, conduziu a moto até
um canteiro gramado. Apesar daquela situação, agradeceu por ter evitado uma
tragédia maior. Dois garis lhe ajudaram a tirá-la da pista. Não havia outros
motoqueiros por perto para socorrê-lo, nem muito menos alguma borracharia pelas
proximidades. Ainda estava distante do destino. O jeito era esperar debaixo do
viaduto até que a tempestade passasse. Como se não pudesse piorar, seu telefone
ficou sem bateria.
Apenas após quase quarenta minutos começou a
estiar. Já era noite. Empurrou a moto por quatro quilômetros até chegar ao
endereço. Nem imaginava como faria para consertá-la, muito menos como retornaria.
Pensou em desistir, mas o compromisso falava mais alto. Finalmente chegou ao
prédio. Tirou o capacete e trocou a máscara com a última que havia sobrado no
bolso. Mesmo com tudo molhado, desinfetou todo o seu equipamento antes de retirar
a encomenda. A loja avisou que precisava ser entregue em mãos. Observou aquele
belo embrulho com curiosidade, mas nem tentava imaginar o que haveria dentro. Com
a roupa encharcada subiu os degraus com passos pesados e lentos. Ainda bem que
era no primeiro andar. Perante o apartamento número sete tocou a campainha. Ouviu
suaves sons de sinos. Estava horas atrasado. Ao abrir a porta foi atendido por
uma senhora de sorriso gentil. Pelos olhos deduziu que fosse oriental ou descendente,
japonesa talvez. Quando lhe entregou o presente, abriu-o imediatamente com suas
mãos protegidas por luvas brancas: era um jarro com flores. Sentiu-se contente
pela moto não ter caído. Com certeza teria quebrado ou danificado as pétalas.
— São crisântemos. Sempre foram as minhas
preferidas — a idosa mulher disse subitamente.
— São muito bonitas — Respondeu com
espontaneidade, sem disfarçar a exaustão e a voz ofegante.
— Toda vez que eu fazia aniversário meu
esposo me presenteava com flores assim e continuei a recebê-las mesmo após sua
morte — Completou, já com as lágrimas acumulando-se nos sulcos dos olhos
escavados pelo tempo. Sem saber o que falar, ele apenas sorriu amavelmente.
— Por favor, entre e tome um pouco de chá —
Ofereceu, enxugando os olhos.
— Muito obrigado senhora, mas tenho que ir —
Agradeceu.
— Deixe-me então ao menos enxugar sua jaqueta
— E antes que pudesse dizer não, ela retirou seu casaco e rapidamente entrou
para dentro.
Por entre a porta entreaberta observou os porta-retratos
com diversas fotos dela com um senhor, provavelmente seu marido. Retornou alguns
minutos depois com o agasalho totalmente seco. Ambos disseram obrigado e em
seguida o motoboy desceu rumo à portaria. E ao apanhar as suas chaves no bolso,
encontrou aquele envelope. Dentro havia uma boa quantia de dinheiro e um
bilhete manuscrito: “Pela janela vi
quando você chegou. Muito grata por todo esforço. Atrás do edifício há uma oficina
aberta ainda. Sempre acredite em seu caminho”. Na hora sua reação foi apenas
agradecer olhando para o céu. Naquele momento percebeu como estava tão
estrelado.
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