VELOZ
Corria. Não possuía qualquer motivo especial para isso, mas mesmo
assim corria. Na calçada do parque num domingo qualquer, sob o sol de
uma tarde comum, ultrapassando passantes com a facilidade de um
driblador. Correr por pura e simples vontade. Correr apenas por correr.
Sentir em seus músculos exaltados o esforço do movimento contínuo e no
rosto o vento batendo cortante. O indispensável ritmo ininterrupto dos
braços impulsionando a corrida. A
respiração mantida em cadência. Pensamentos focalizados num único
objetivo. Correr. Correr. Correr. Correr... Nem o lento cair de folhas
roubava sua concentração. Na mente apenas um desejo: se superar,
desafiar o corpo até seus limites, senti-lo em toda sua plenitude, saber
o quanto poderia aguentar. Duelava consigo mesmo. Um combate
silencioso, mas que não deixava de ser combate. E mesmo que tentasse
explicar isso, ninguém iria entender. Então, apenas corria.
Silenciosamente. Sem parar. E era isso que lhe importava no momento. Ele
corre. Limpa a saliva que escorria nos lábios. Aumenta a velocidade. Os
cabelos começam a ficar úmidos. Corre. Resistir ao determinado antes
que tudo se resuma em apenas cansaço. Rápido, cada vez mais rápido.
Acreditar no oposto mesmo que o que resta seja tão escasso. Algum
conhecido lhe acenou. Sobreviver. A paisagem passando cada vez mais
depressa diante dos seus olhos fixos. Todos lhe abrem caminho. Tinha
consciência de que não poderia derrotar a dor no momento presente, mas
desejava pelo menos revidá-la, com um golpe, um ataque, qualquer
suspiro, ao menos enfrentá-la. O coração bate acelerado. Enfrentava-a.
Corre. Um ciclista tenta acompanhá-lo sem conseguir. Uma bola perdida
raspa sua cabeça. Quase atropela um poodle com sua madame. Espantou um
bando de pombos. Corre. A respiração ofegante. A garganta seca. A blusa
encharcada de suor. O corpo exausto. Suas mãos doem. Mas não pára.
Corre. Corre. Corre. Correndo para sobreviver. Sobreviver ao passado,
aos erros, ao desastre, à dor. Desenterrar a força ocultada pelo áspero.
Esquecer. Ir para longe. Bem longe. Longe de tudo. Correr para perto de
si. Havia agora apenas ele contra ele mesmo. Sua revanche contra o que
se impunha destino. Correr. De repente surge uma ladeira. Descia
descontrolado. O coração em disparada. Não tinha como parar. Veloz.
Muito veloz. Velocíssimo. Mas não sentia medo. Nenhum medo. Sentia-se
como há tempos não se sentia. Sentia-se livre. E quando uma pedra bateu
contra a sua cadeira de rodas, lançando-o ao longe, rolou pela calçada à
fora até cair estirado no chão. Permaneceu assim por alguns instantes.
Algumas pessoas se aproximaram para socorrê-lo. Outras só espiavam. Mas
antes que alguém pudesse fazer algo, ele levantou a cabeça, olhou em
volta, e riu, um riso estridente, ecoante, elástico, solto. Um riso de
alegria. Perdoou-se.
Geraldo Ramiere
* conto escrito em 2006 - original sem alterações
IMAGEM: arte de Cris Rivera
IMAGEM: arte de Cris Rivera
Nenhum comentário:
Postar um comentário