quarta-feira, 13 de setembro de 2017

Escritos de Uma Cápsula do Tempo #8 VELOZ


VELOZ

Corria. Não possuía qualquer motivo especial para isso, mas mesmo assim corria. Na calçada do parque num domingo qualquer, sob o sol de uma tarde comum, ultrapassando passantes com a facilidade de um driblador. Correr por pura e simples vontade. Correr apenas por correr. Sentir em seus músculos exaltados o esforço do movimento contínuo e no rosto o vento batendo cortante. O indispensável ritmo ininterrupto dos braços impulsionando a corrida. A respiração mantida em cadência. Pensamentos focalizados num único objetivo. Correr. Correr. Correr. Correr... Nem o lento cair de folhas roubava sua concentração. Na mente apenas um desejo: se superar, desafiar o corpo até seus limites, senti-lo em toda sua plenitude, saber o quanto poderia aguentar. Duelava consigo mesmo. Um combate silencioso, mas que não deixava de ser combate. E mesmo que tentasse explicar isso, ninguém iria entender. Então, apenas corria. Silenciosamente. Sem parar. E era isso que lhe importava no momento. Ele corre. Limpa a saliva que escorria nos lábios. Aumenta a velocidade. Os cabelos começam a ficar úmidos. Corre. Resistir ao determinado antes que tudo se resuma em apenas cansaço. Rápido, cada vez mais rápido. Acreditar no oposto mesmo que o que resta seja tão escasso. Algum conhecido lhe acenou. Sobreviver. A paisagem passando cada vez mais depressa diante dos seus olhos fixos. Todos lhe abrem caminho. Tinha consciência de que não poderia derrotar a dor no momento presente, mas desejava pelo menos revidá-la, com um golpe, um ataque, qualquer suspiro, ao menos enfrentá-la. O coração bate acelerado. Enfrentava-a. Corre. Um ciclista tenta acompanhá-lo sem conseguir. Uma bola perdida raspa sua cabeça. Quase atropela um poodle com sua madame. Espantou um bando de pombos. Corre. A respiração ofegante. A garganta seca. A blusa encharcada de suor. O corpo exausto. Suas mãos doem. Mas não pára. Corre. Corre. Corre. Correndo para sobreviver. Sobreviver ao passado, aos erros, ao desastre, à dor. Desenterrar a força ocultada pelo áspero. Esquecer. Ir para longe. Bem longe. Longe de tudo. Correr para perto de si. Havia agora apenas ele contra ele mesmo. Sua revanche contra o que se impunha destino. Correr. De repente surge uma ladeira. Descia descontrolado. O coração em disparada. Não tinha como parar. Veloz. Muito veloz. Velocíssimo. Mas não sentia medo. Nenhum medo. Sentia-se como há tempos não se sentia. Sentia-se livre. E quando uma pedra bateu contra a sua cadeira de rodas, lançando-o ao longe, rolou pela calçada à fora até cair estirado no chão. Permaneceu assim por alguns instantes. Algumas pessoas se aproximaram para socorrê-lo. Outras só espiavam. Mas antes que alguém pudesse fazer algo, ele levantou a cabeça, olhou em volta, e riu, um riso estridente, ecoante, elástico, solto. Um riso de alegria. Perdoou-se.

Geraldo Ramiere

* conto escrito em 2006 - original sem alterações

IMAGEM: arte de Cris Rivera

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