domingo, 31 de outubro de 2021

SE O AMOR ESCREVESSE POEMAS


 SE O AMOR ESCREVESSE POEMAS

Se o amor escrevesse poemas
Provavelmente seria em segredo
Manuscritos em papéis avulsos
E contracapas de antigos cadernos
Perdidos nas gavetas do tempo
Se o amor escrevesse poemas
Decerto demoraria para rascunhá-los
E talvez muitos acabariam rasgados
Será que seriam sem rimas ou sonetos?
Em versos livres, trovas ou toadas?
Se o amor escrevesse poemas
Certamente nomes não lhe dariam
E por ele nem seriam assinados
Sendo quem sabe até mais belos
Que os de Camões, Neruda e Vinícius
E se o amor escrevesse poemas
Quem me dera poder plagiá-los
Se bem que deveras desconfio
Que uma ínfima fração de sua poesia
Psicografamos mesmo mal-amados
Geraldo Ramiere (do livro Desencantares Para O Esquecimento, página 31, editora Viseu)

sexta-feira, 27 de agosto de 2021

DESENCANTARES PARA O ESQUECIMENTO - de Geraldo Ramiere

 

Adquira o livro impresso ou e-book diretamente no site da editora Viseu: www.eviseu.com LANÇAMENTO VIRTUAL EM SETEMBRO DE 2021!

segunda-feira, 26 de julho de 2021

Publicação do Livro de Poemas DESENCANTARES PARA O ESQUECIMENTO de GERALDO RAMIERE

 


Gente querida, sou Geraldo Ramiere criador deste blog literário e autor dos seus textos. É com imensa alegria que venho compartilhar publicação do meu primeiro livro, DESENCANTARES PARA O ESQUECIMENTO (poemas), pela editora Viseu (2021). Muitos dos textos aqui publicados fazem parte do livro.


Convido a todos vocês para conhecer e adquirir o meu DESENCANTARES PARA O ESQUECIMENTO, acessando: https://www.eviseu.com/pt/livros/2013/desencantares-para-o-esquecimento/?fbclid=IwAR0GLRBtrLXUq9gmYx8xDi6tBExVHjGoJc9j5kMoZTFFPRp1EcKgHejaT8s

O livro está agora em período de pré-venda que vai até o dia 23/08/2021, com a entrega dos exemplares prevista para 07/09/2021. A pré-venda é uma espécie de reserva realizada antes que o livro impresso esteja disponível na editora, em que os leitores podem realizar a compra de forma antecipada. Eu agradeceria muito aos que puderem reservá-lo desde já. Neste primeiro momento, o livro poderá ser adquirido apenas no site da editora Viseu e brevemente em lojas parceiras. Muito obrigado a todo mundo que puder contribuir, adquirindo meu Desencantares Para Esquecimento e/ou divulgando-o.

Durante os próximos meses, em todas as segundas-feiras publicarei aqui na blog um poema que faz parte do DESENCANTARES PARA O ESQUECIMENTO e outras divulgações do livro.

Um grande abraço!

quarta-feira, 16 de junho de 2021

VERSOS EM DIÁSPORAS

 


VERSOS EM DIÁSPORAS

 A poesia é uma imigrante ilegal

Fugindo de guerras ou da pobreza

Com medo de morrer, de ser presa

Ao passar escondida numa fronteira

É quem enfrenta cercas e muros

Ou a criança que morreu afogada

Quando tentou atravessar o mar

Junto com a família inteira

 

O poema é um imigrante ilegal

Fugindo para não ser deportado

Tentando recomeçar a vida

Numa hostil terra estrangeira

É alguém em trabalho escravo

Enganado por falsas promessas

Ou quem sofre com a intolerância

De uma sociedade em cegueira

 

Nós somos versos em diásporas

Refugiados pelo mundo afora

Sobrevivendo e se encontrando

Cada qual a sua maneira

Mas a maioria se esquece

Que todas as palavras já migraram

Nem que seja em suas origens

E de imigrantes são herdeiras

 

Geraldo Ramiere


quarta-feira, 2 de junho de 2021

FLORES DO ALVORECER

IMAGEM: pintura de Duy Huynh (com adaptações)

Era a última vez que lhe batia. Quando ele dormiu, levantou em silêncio e espalhou as sementes pela casa. Antes de se deitar, lançou-as também no homem sobre os lençóis e ingeriu as que restaram. Ao amanhecer, as flores iluminaram sua casa e a única dona dela.
Geraldo Ramiere

segunda-feira, 17 de maio de 2021

BUSHIDO

             

IMAGEM: estátua japonesa de samurai - galeria do Hotel Bellagio, Las Vegas, EUA.

           Já estava quase encerrando seu horário quando ligaram para realizar uma última entrega. Somente quando pegou a encomenda viu que o endereço ficava no outro extremo da cidade. Apesar do cansaço e preocupado com o tempo que começava a se fechar numa escuridão cinza, cumpriria aquela tarefa antes de voltar para casa. Com todo cuidado guardou o pacote no porta-objetos da moto, afivelou bem o capacete sobre a nova máscara e seguiu a rota planejada. Por ser fim de tarde pegou justamente a hora do rush.

Através do trânsito intenso acelerava, mas sem imprudência. Nesses tantos anos como motoboy feriu-se apenas uma única vez e mesmo assim não foi culpa sua. A barbeiragem de um motorista bêbado que fugiu sem prestar socorro lhe custou duas costelas quebradas e um mês acamado sem receber salário. Em seu coração não restava raiva ou rancor, mas desde então sua cautela era maior do que nunca. Escapava do congestionamento driblando automóveis feito um bailarino. Com a pandemia os pedidos aumentaram bastante, ainda mais nestes dias de lockdown, disso não podia reclamar, contudo, a maioria das pessoas parecia estar mais impaciente do que antes, inclusive no trânsito, fazendo de cada dia uma batalha diária, a qual enfrentava sem medo. Seus colegas de profissão ansiavam agitados diante do semáforo enquanto ele aguardava com calma a abertura do sinal vermelho que jamais furou. Lógico que tinha receio de ficar doente, principalmente por sua família, porém, no momento não havia outra opção a não ser trabalhar tomando todos os cuidados e pedir proteção em suas orações.

Começava a chover com intensidade. Para chegar mais rápido e fugir de outros engarrafamentos, pegou um atalho que conhecia. Às vezes pensava em mudar de profissão, sobretudo pelos riscos, entretanto, sabia que aquele trabalho era muito importante para muitas pessoas, especialmente naquele momento em que a maioria precisava permanecer em seus lares o quanto pudesse. Sentia-se honrado por isso. Oculto no buraco camuflado pela poça d’água, não havia como ver aquele pedaço pontiagudo de vidro rasgando um dos pneus. Na hora manteve a tranquilidade e, sem frear, conduziu a moto até um canteiro gramado. Apesar daquela situação, agradeceu por ter evitado uma tragédia maior. Dois garis lhe ajudaram a tirá-la da pista. Não havia outros motoqueiros por perto para socorrê-lo, nem muito menos alguma borracharia pelas proximidades. Ainda estava distante do destino. O jeito era esperar debaixo do viaduto até que a tempestade passasse. Como se não pudesse piorar, seu telefone ficou sem bateria.

Apenas após quase quarenta minutos começou a estiar. Já era noite. Empurrou a moto por quatro quilômetros até chegar ao endereço. Nem imaginava como faria para consertá-la, muito menos como retornaria. Pensou em desistir, mas o compromisso falava mais alto. Finalmente chegou ao prédio. Tirou o capacete e trocou a máscara com a última que havia sobrado no bolso. Mesmo com tudo molhado, desinfetou todo o seu equipamento antes de retirar a encomenda. A loja avisou que precisava ser entregue em mãos. Observou aquele belo embrulho com curiosidade, mas nem tentava imaginar o que haveria dentro. Com a roupa encharcada subiu os degraus com passos pesados e lentos. Ainda bem que era no primeiro andar. Perante o apartamento número sete tocou a campainha. Ouviu suaves sons de sinos. Estava horas atrasado. Ao abrir a porta foi atendido por uma senhora de sorriso gentil. Pelos olhos deduziu que fosse oriental ou descendente, japonesa talvez. Quando lhe entregou o presente, abriu-o imediatamente com suas mãos protegidas por luvas brancas: era um jarro com flores. Sentiu-se contente pela moto não ter caído. Com certeza teria quebrado ou danificado as pétalas.

— São crisântemos. Sempre foram as minhas preferidas — a idosa mulher disse subitamente.

— São muito bonitas — Respondeu com espontaneidade, sem disfarçar a exaustão e a voz ofegante.

— Toda vez que eu fazia aniversário meu esposo me presenteava com flores assim e continuei a recebê-las mesmo após sua morte — Completou, já com as lágrimas acumulando-se nos sulcos dos olhos escavados pelo tempo. Sem saber o que falar, ele apenas sorriu amavelmente.

— Por favor, entre e tome um pouco de chá — Ofereceu, enxugando os olhos.

— Muito obrigado senhora, mas tenho que ir — Agradeceu.

— Deixe-me então ao menos enxugar sua jaqueta — E antes que pudesse dizer não, ela retirou seu casaco e rapidamente entrou para dentro.

Por entre a porta entreaberta observou os porta-retratos com diversas fotos dela com um senhor, provavelmente seu marido. Retornou alguns minutos depois com o agasalho totalmente seco. Ambos disseram obrigado e em seguida o motoboy desceu rumo à portaria. E ao apanhar as suas chaves no bolso, encontrou aquele envelope. Dentro havia uma boa quantia de dinheiro e um bilhete manuscrito: “Pela janela vi quando você chegou. Muito grata por todo esforço. Atrás do edifício há uma oficina aberta ainda. Sempre acredite em seu caminho”. Na hora sua reação foi apenas agradecer olhando para o céu. Naquele momento percebeu como estava tão estrelado.

                                                                                                                     Geraldo Ramiere 


          

sexta-feira, 7 de maio de 2021

CLT

 Em suas mãos negras contemplava a carteira de trabalho aberta em branco. Da última entrevista de emprego, disseram que talvez ligariam até o fim da semana. Mesmo sendo sábado, ainda acreditava. Afinal hoje era 1º de Maio e quem sabe de fato fosse seu dia. A noite chegou e o telefone permaneceu em silêncio, porém, continuava ouvindo o próprio coração.

Geraldo Ramiere


IMAGEM: pintura de Antonio Berni.


segunda-feira, 12 de abril de 2021

A JANELA AO LADO

Estava trancado há tantos dias que já havia perdido a noção do tempo. Ter sido contaminado pela Covid-19 era de longe seu menor pavor. Morrer sozinho e distante dos seus entes queridos sem direito nem ao menos a um velório, isso sim o assombrava. Seria como se morresse duas vezes. Por isso, apesar de doente, estava de algum modo feliz pela enfermidade não ter agravado ao ponto de interná-lo. Isolado naqueles cômodos, tinha a visita solitária do filho único (que, aliás, por sorte morava com a família no mesmo andar) e a vista unilateral da janela do quarto de onde raramente saía, cuja paisagem desolada de uma construção só lhe deixava mais deprimido e mal-humorado. Queria muito ver os netos, não apenas pela saudade, mas também por medo de ser hospitalizado após alguma piora e depois falecer de repente, sem ao menos guardar na memória uma lembrança recente deles. E quando da sua janela outra vez reclamava aos ventos por causa dos barulhos da obra, subitamente lhe veio uma ideia inusitada na mente ao observar a fachada do seu prédio. Um plano arriscado, porém, possível. Caminhar pela borda não muito estreita do edifício, passar por dois apartamentos vizinhos até chegar ao da sua família. Por esses dias já tossia bem menos e nunca teve qualquer medo de altura ou vertigem. Se caísse, talvez sobreviveria, pois eram apenas dois andares até o chão. Ao menos na hora assim raciocinou. “Já tem tempo que estou pronto para bater as botas mesmo” — pensou, ironizando a si mesmo. Sabia que naquela tarde toda a sua família estaria em casa. Era um dia quente e seco, sem ventos. Perfeito para aquele plano arriscado. Então, de meias apenas, após tirar os sapatos, foi caminhando lentamente pela borda da fachada, escorando na parede externa com as mãos e rosto. Teve o cuidado de usar máscara. Passava pelo primeiro apartamento. Reservado e antissocial como sempre foi, mesmo morando há anos por lá, nunca manteve amizade com vizinhos, e exceto pelo filho, a nora, os dois netos, o porteiro e a síndica, não conhecia ninguém direito daquele prédio, muito menos quem morava ao seu lado. Através do vidro fechado pode reparar num casal de uns trinta anos, distraidamente assistindo à TV com uma criança no berço. Retribuiu um sorriso que ela lhe deu. Alguns instantes depois já estava no próximo, com a janela aberta, mas protegida por uma tela. No peitoril interno um gato cochilava descansando mansamente. Deixou que lhe cheirasse a mão para não assustá-lo, o que acabou dando certo. Um pouco mais e finalmente chegaria à janela que tanto queria. Para sua sorte, as crianças mantinham-se deitadas no chão da sala lendo livros, estudando, possivelmente. Conseguia ouvir a voz do seu filho vinda da cozinha, conversando com a esposa justamente sobre ele. Estava preocupado com o pai. E com razão. Permaneceu estático, admirando-os apenas, sem ninguém notar. Foram seis minutos somente, mas que aos seus olhos valiam seus sessenta anos de vida. Acalmado o coração, decidiu fazer o caminho inverso antes que fosse descoberto. Foi regressando mais rápido do que havia ido. E quando já estava quase entrando de volta em seu quarto, de repente um dos operários da construção gritou: “— Olha que velho doido!”. Assustado pelo grito, perdeu o equilíbrio e começou a cair. Quando já preparava-se para a queda, sentiu alguém lhe segurando firme pelos braços. Rapidamente apoiou-se com a perna na varanda e entrou num salto pela janela aberta. Na hora só pensou em advertir aquela senhora que lhe socorreu sobre seu quadro de saúde. Ao ouvi-lo, ela respondeu com gracejo: “— Não se preocupe. Estou com coronavírus também!”. Tinha praticamente sua idade, vivendo igualmente sozinha em viuvez. Naquele dia, depois de muitas histórias compartilhadas, passaram a noite juntos. Pela manhã, só voltou para seu apartamento porque sabia que o filho o visitaria cedo. Subiu correndo pela escada com cuidado para não encontrar alguém ou tocar no corrimão. Repetiu o mesmo trajeto por semanas em segredo. Bem antes disso, os dois já estavam curados. Passados três meses, reuniram seus familiares para contar que iriam se casar no final de setembro. Continuaram a morar cada um em seu apartamento. Para manter o romantismo, sempre trocam cartas de amor, presentes e beijos lançados pelas janelas.

  Geraldo Ramiere

terça-feira, 30 de março de 2021

OOPARTS

 

Fora do lugar e do tempo
Deixei meus objetos guardados
De um modo tão evidente
Que arqueólogos não entenderão
E dirão não serem reais
Nesses olhos anacrônicos
Vestindo vestígios
Historiografei-me por inteiro
Desenhando mapas de lugares
Que ainda irão descobrir

Geraldo Ramiere


IMAGEM: fragmento da Fonte Magna.

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

BLOCO DAS SAUDADES

IMAGEM: pintura de Di Cavalcanti. 


BLOCO DAS SAUDADES

Neste ano nosso carnaval é saudades
E no encontro das sonoras lembranças
De carnavais recém-passados e antigos
Foliamos ébrios e na nostalgia perdidos
Ao relembrarmos aquela louca alegria
Que por agora não celebramos mais

Neste ano nosso carnaval é saudades
Saudades de abraçarmos sem receios
Dos beijos desobrigados e desmedidos
E sobretudo, saudades dos que se foram
Arrastados brutalmente pelos cordões
Da pandemia, ignorâncias e descasos

Neste nosso carnaval das saudades
Saudosas estão as ruas certamente
De nos verem sem essas tristes máscaras
Contudo, decerto deprimidas se sentem
Olhando tantos que ainda se aglomeram
Na fatídica farra da negação e menosprezo

E além de ser saudades, este é também
O carnaval da esperança em que ansiamos
Por uma em breve imune e livre realidade
Para que no próximo ano possamos enfim
Nos reunir novamente, inclusive aqueles
Que de reclamar do carnaval, estão com saudades

Geraldo Ramiere


quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

ENCONTRO


 ENCONTRO

Que susto levei
Quando de madrugada
Em casa sozinho
Acordei com o barulho
De alguém abrindo
A porta do quarto
No escuro, peguei um abajur
E quando já estava pronto
Para acertar o invasor
Acenderam as luzes
E só então que vi
Que era tu Drummond!
Tua estátua aliás
Vindo de longe
Certamente de carona
Para me encontrar
Visitando-me do jeito
Que te prometi e nunca fiz
E antes que pudesse
Fazer qualquer pergunta
Eu me recordei
Você sempre teve as chaves

Geraldo Ramiere

quarta-feira, 28 de outubro de 2020

“MACHISMO MATA”

                              

“MACHISMO MATA”

Caso estes versos se chamassem

De poesia ao invés de poema

E usassem o nome Maria

Por exemplo, já bastaria

Para aumentar suas chances

De ser agredida ou assassinada

 

No Brasil, somente em 2019

1314 mulheres e 124 pessoas trans

Foram mortas unicamente

Por causa dos seus gêneros

Segundo dados oficiais

Ainda inferiores à realidade

 

“O machismo mata todos os dias”

Se esta frase não é minha

A responsabilidade é toda nossa

 

Geraldo Ramiere

sexta-feira, 23 de outubro de 2020

A PRIMEIRA CHUVA DE PRIMAVERA

 

A PRIMEIRA CHUVA DE PRIMAVERA

As flores foram proibidas. Todas elas. Nunca explicaram exatamente o motivo, mas acabaram sendo consideradas subversivas, degeneradas, profanas, perigosos símbolos de alguma revolução que se precisava deter antes que acontecesse. Eram censuradas, confiscadas, recolhidas, queimadas. Quem portasse mesmo que fosse uma simples flor seria preso e, dependendo da quantidade, executado. Até as flores das árvores eram perseguidas e destruídas, impedindo assim o nascimento da maioria dos frutos, o que trouxe uma época de fome infindável. Diversas cores também foram banidas, e apenas as consideradas neutras continuavam sendo permitidas. Ainda houve aqueles que resistiam, e de vez em quando alguma flor aparecia em lugares inesperados, porém rapidamente era arrancada. A maioria dos pássaros e insetos desapareceram. E com o tempo, das flores restaram apenas suas imagens, depois também decretadas ilícitas. A primavera já não existia e o inverno tornou-se a única estação. Passados os anos, chegou o dia em quase ninguém das flores se recordava mais. Foi quando aquela chuva veio. Por entre tantos silêncios, poucos perceberam as densas nuvens lentamente ocupando os céus, até que numa certa noite, uma tempestade que há tempos não se via, formou-se de repente, e com ventos que assobiavam soprando forte, surgiu desabando sobre a cidade, molhando quem passava. E quando intensamente chovia, o que parecia ser sementes emergiam misturadas à água, algo para qual quase ninguém deu atenção. Ao amanhecer do dia seguinte é que as pessoas se espantaram. Incontáveis flores, de todas as espécies e cores, surgiam em todos os lugares. Nas fachadas das casas e dos prédios, sobre os telhados, muros e carros, brotavam dos asfaltos e calçadas, envolviam antenas, postes e fios de alta tensão. Havia flores inclusive nas pessoas, em suas roupas, sapatos, cabelos e pensamentos. As árvores voltaram a florescer e logo ouviu-se os sons da natureza outrora desaparecida. E mesmo com tamanho reflorescimento, alguns ainda queriam tentar impedir tudo aquilo e manter as flores proibidas, porém, fazer isso já não era mais possível, e com seus ódios acuados, dos seus poderes retrocederam, sem deles nunca desistir. Enquanto isso, pelas ruas se celebrava, principalmente entre as crianças, a primeira de muitas primaveras.

Geraldo Ramiere

quinta-feira, 24 de setembro de 2020

ACORDES EM NÓS

 

ACORDES EM NÓS

Sem permissão nem prelúdio
Incessantemente ressoa
A música que emana
De dentro
Entoando
Além desses corpos
De matérias e sentimentos
No desadormecer de si mesma
E prosseguindo se renova
De ressoar em ressoar
Como um tocar
Em águas
Geraldo Ramiere

domingo, 13 de setembro de 2020

LAVRAMENTO

 

IMAGEM: pintura de J. Fernando.


LAVRAMENTO

Sou descendente de lavradores
Que da terra tiram seu sustento
Arando e cultivando anos antes
Dos avós dos meus avós nascerem
E assim seus filhos foram criados
No campo e plantio desde pequenos
Minha mãe espantando pássaros
Para não comerem as colheitas
Meu pai plantando e cortando cana
Bebendo do alambique pra aquecer
E mesmo hoje, da roça distantes
Preservam-se campesinos no ser
Eu também sou lavrador
Porém diferente dos meus ancestrais
Sou lavrador de céus e nuvens
E abrindo seus solos com as mãos
Neles semeio silêncios e palavras
Minhas lavouras do improvável
De cujos plantios atualmente zelo
Igual faziam meus pais e avós
Até chegar a estação certa
De finalmente colher a poesia
Para depois compartilhá-la
Manuscrita em lavramento
Geraldo Ramiere

segunda-feira, 31 de agosto de 2020

FLUIDEZ

Se for pra cair
Que seja queda
De cachoeira
Meu corpo d’água
Na nascente de si
Brota, gota a gota
Que infindável forma
Mais uma poça ínfima
Deste planeta azul
E ao fluir lentamente
Margeia em seu leito
Suas próprias correntezas
Percorrendo meandros
Expandindo profundidades
Até às vezes transbordar
No desespero de enchente
Após certas tempestades
Que depois das lágrimas
Derramadas em demasia
Volta a seguir seu curso
Livre e liquidamente
Se for pra morrer
Que seja feito rio
Desaguando no mar
Geraldo Ramiere

IMAGEM: pintura de Mari José Gaztelumendi



quarta-feira, 19 de agosto de 2020

ALTA MIRAGEM - para o aniversário de 161 anos de Planaltina-DF

IMAGEM: estátua de Luis Cruls em Planaltina-DF.


ALTA MIRAGEM

Para onde será que tanto olha
Luís Cruls com sua luneta
Parado parecendo estátua
No meio da praça São Sebastião?

Do ponto mais alto miro a cidade
Com suas casas e desilusões
Ou pode ser mera miragem
Deste meu deserto em reflexão

Não importa onde eu esteja
Planaltina em mim se espelha
Edificada dentro do peito
Planalto central do coração

Geraldo Ramiere

Tradutor