terça-feira, 8 de agosto de 2017

Escritos De Uma Cápsula do Tempo #2 A VIDRAÇA

A VIDRAÇA (Geraldo Ramiere)

No primeiro dia, apenas observava-o, tranquilamente, parado em pé, de frente ao restaurante, por detrás do vidro. Naquela ocasião o nobre senhor até que estranhou aquele menino de rua sujo e maltrapilho lhe vendo almoçar. Há anos ele sempre comia naquele lugar todos os dias, mesmo depois que aposentou sua farda de major, mas não ligou muito para aquele garoto, continuando sossegadamente sua refeição de sempre. No segundo dia, o menino havia retornado, dessa vez encarando-o diretamente nos olhos, seminu, sem se importar com o frio que fazia lá fora. O velho major, indiferente, apenas desviava o olhar, degustando sua tradicional sopa de carne. No terceiro dia, incomodado por se sentir sob vigia, especialmente no exato momento em que ia morder um pedaço de pão molhado, o major reclamou com o garçom do constrangimento pelo qual passava. O rapaz apenas respondeu que não podia fazer nada, pois a rua era lugar de todos. No quarto dia, o menino novamente estava lá, no mesmo lugar, do mesmo jeito, sempre a olhá-lo, fixamente, profundamente, sem sequer mexer os lábios, como se lhe examinasse. Dessa vez o velho começava a achar engraçada aquela situação, a de ser admirado igual um animal enjaulado, como num circo, sentindo-se até detentor de um certo poder. Saboreando sua sopa, esboçando várias exageradas expressões faciais, ele começou a tentar de tudo para provocar o garoto, até esticar um pedaço de pão ensopado em sua direção, oferecendo-o ironicamente. Porém nada adiantava. Ele permanecia lá, em pé, estático, no mesmíssimo lugar, em vigília, sempre a perscrutá-lo, por detrás do vidro. O major então começou a perceber o quanto estava sendo infantil, coçando os brancos cabelos que denunciavam a velhice. No quinto dia, arrependido do seu comportamento anterior, começava a sentir pena daquele pequeno descamisado, sozinho ao relento. Decidido então em fazer um ato de caridade, mandou que o garçom levasse-lhe um prato de sopa, igual ao seu, tanto para aliviar sua consciência como também por crer que com isso mandaria-o embora, acreditando que era a cobiça por sua comida que o mantinha ali. Mas assustou-se quando percebeu que o prato permanecia no chão, intocado, com ele ainda a olhá-lo, inalterado, cada vez mais profundamente, cada vez com mais firmeza, indo embora apenas, como havia sido até aquele momento, quando o velho também fosse, sempre espreitando-o. Deixou o alimento intacto. No sexto dia, notando outra vez sua presença, sentiu impaciência, depois raiva, por fim ódio. Dessa vez não se rebaixaria, pensou: encarou-lhe olho no olho, aceitando o desafio. Mas o combate durou pouco. Não conseguiu defrontar o olhar por muito tempo com aquele menino que incrivelmente intimidava-o, vendo em seus olhos uma melancolia imensurável, ao mesmo tempo tristeza e acusação. E o que era odiosidade transformou-se em pavor. No sétimo dia, o velho major entrou no mesmo restaurante, na mesma hora, ocupou a mesma mesa, sentou na mesma cadeira e pediu a mesma sopa, repetindo minuciosamente o antigo ritual que sempre seguia. Mas dessa vez tinha vindo preparado: trouxe um antigo porrete, escondido dentro da sua japona militar. Prometeu a si mesmo que esperaria aquele moleque chegar, como de costume, e que correria atrás dele até alcançá-lo, e que o espancaria, até não poder mais, para ensiná-lo a respeitar a paz dos outros. E se acaso isso não adiantasse, se ele ainda insistisse em molestá-lo, jurou que o mataria, com suas próprias mãos. Contudo o pivete ainda não havia chegando. Já estava passando da hora, mas não chegava. O nobre senhor olhava o relógio a todo instante, neuroticamente, mas dele não havia sinal algum. Finalmente desistiu de esperá-lo, olhando a sopa que já tinha esfriado. Sentiu-se decepcionado, mas também livre de um enorme peso. Enfim novamente tomava a sua refeição com tranquilidade, alegremente, calmamente, picando pequenos pedaços de pão, molhando-os antes de levá-los à boca, como sempre fazia, de volta à sua querida rotina. Absorto em seu regozijo, mal conseguiu ouvir os estalos que zuniram sucessivamente: do tiro, da vidraça espatifada, do seu crânio perfurado, produzidos pelo mesmo projétil. A vidraça quebrou-se. Tudo aquilo que separava um do outro se estilhava numa questão de segundos. E entre gritos dos passantes, entre o pavor dos demais fregueses, entre o vômito do garçom e o corpo com a cabeça estourada que insistentemente ainda segurava a colher, havia a sopa: com carne, com miolos, com sangue.
Obs: Este foi meu primeiro conto, escrito em 2002 e publicado pela primeira vez no mesmo ano, num jornal que fazíamos na universidade. Desde então foi publicado em alguns sites e premiado em concursos literários. Há anos deixei em meus guardados. Fiz algumas pequenas alterações no texto original, porém nada de substancial foi mudado.

IMAGEM: foto cuja autoria desconheço

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