quinta-feira, 10 de agosto de 2017

Escritos de Uma Cápsula do Tempo #3 MUTILADOS CIDADÃOS MODERNOS

MUTILADOS CIDADÃOS MODERNOS
Jogaram pedaços pelas janelas

Muitos e muitos pedaços
Ainda pulsantes e ensanguentados 
Mãos, pés, pernas, orelhas, narizes,
Olhos, cabeças, ventres, genitálias...
Lançados dos altíssimos prédios 
Na avenida, nos transeuntes, que apressadamente atravessavam a avenida
Jogavam pedaços pelas janelas
De mulheres e homens, andróginos pedaços 
Continuando a cair sobre os passantes 
Sempre seguindo a sinfonia de ruídos 
Buzinas, rangidos, teclados, gritos, suspiros ofegantes...
Hipnotizados robóticos caminhantes 
Sem cessar jogavam pedaços pelas janelas
Na multidão, na avenida, atingidos por seus próprios pedaços 
Um braço caiu num carro, um pescoço numa vitrine
Um fígado descamba no semáforo, um rim num outdoor 
Um siliconado seio espatifa-se ao bater no meio-fio
Sobre apressados, na avenida, inúmeros pedaços 
Mas eles nada disso percebem 
Prosseguindo em seus caminhos 
Despedaçamente indiferentes
Apedaçados, mutilados, mulheres e homens 
Parece que ja se acostumaram com o sangue, seu sangue
Parece que ninguém vê isso 
Que somente eu, bestificado, parei
Só eu me assusto e olho pro alto
Só eu continuo limpo...
Até que um pedaço me atingi
Um coração, meu arrancando coração de homem 
Foi quando no mesmo instante 
Subitamente surgiu uma criança cega
Que mantinha-se limpa, apesar de tanto sangue Me sorriu, catou meu coração e foi-se embora
Nao sei quem, mas do alto jogavam pedaços 
De mulheres e homens, atravessando a avenida
Apressados, seus muitos e muitos pedaços 
Nossos arrancados pedaços pelas janelas...


Geraldo Ramiere
(este poema foi publicado na coletânea "Vozes na Paisagem - antologia de poetas brasileiros contemporâneos" em 2005, pela Edições Galo Branco, mas nesta publicação atual passou por algumas alterações em relação a versão original)


IMAGEM: arte de Hans Bellmer

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