domingo, 31 de outubro de 2021

DIÁLOGO


DIÁLOGO
As palavras são tábuas rasas de salvação Muna Ahmad
Como ser outra linguagem
Que não fosse esta
Feita de cansaços?
Contemplo as palavras
Em suas cidadelas
De semânticas e sintaxes
A maioria agrupada
Em classes e locuções
Sob ordens gramaticais
Porém, há também aquelas
Sobrevivendo solitárias
Indefiníveis e arredias
E são tantas palavras
De todos os gêneros e tipos
Que me fogem à vista
Umas calmas e silenciosas
Outras agitadas e eloquentes
Muitas agiam indiferentes
Palavras simples, pomposas
Compostas, pobres, ricas
Padronizadas, excêntricas
Palavras enfáticas, inexpressivas
Alegres, tristes, agressivas
De monossílabas a palavrões
Palavras velhas e jovens
Algumas até gestantes
Grávidas de outras palavras
E, com cautela, delas aproximo
Aparentemente sem notarem
Ou somente me ignoram
Arrisco conversar com uma
Que me olha curiosa, contudo
Logo se afasta, talvez por receio
E ao abordar outras em vão
Percebo o medo que têm de mim
Escuto um tumulto
Uma palavra rodeada por outras
É agredida sozinha no chão
Não consigo me segurar
Aproximo e intercedo
Interrompendo a confusão
Levanto-a já machucada
É uma palavra estrangeira
Que assustada foge de lá
Algumas dessas palavras
Cercam-me mal-humoradas
Precavido, escuto calado
Acompanhando substantivos
Os pronomes me interrogam
E uma interjeição me adverte
Quando parecem satisfeitas
Deixam-me com uns numerais
E verbos que por ali transitavam
Pouco depois ouço um choro
Vindo de um canto morfológico
E encontro uma palavra
Abandonada, recém-nascida
Seguro-a nos braços e reparo
Que ela estava incompleta
Temendo que a machucassem
De lá partimos para bem longe
No caminho, senti-me seguido
E ao olhar para trás descobri
As incontáveis e diversas palavras
Que estavam a nos acompanhar
Hoje possuímos nosso próprio país
Onde nos pronunciamos livremente
Geraldo Ramiere (do livro Desencantares Para O Esquecimento, página 28, editora Viseu).
IMAGEM: arte de Alexander Aquarius.

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