quinta-feira, 4 de junho de 2020

A PARTIDA DA POESIA (Do Futebol e Outras Literaturas)


Além de poeta, também sempre fui goleiro (o que poucos sabem). Por ser péssimo na linha, desde garoto me sobrava somente o gol. De tanto ficar por lá, com o tempo aprendi a agarrar e a gostar disso, mas hoje em dia é raro eu jogar. Dia desses resolvi escrever um poema sobre futebol, o que jamais tentei antes. E foi justamente quando eu me dedicava a essa poesia, aconteceu algo que preciso contar. Ainda não sei ao certo se foi um sonho ou delírio. Recordo apenas do momento que alguém educadamente me tirou a atenção ao tocar meu ombro, dizendo: “Acompanhe-me por favor, temos uma partida daqui a pouco”. Era calvo e usava óculos; na hora não o reconheci, porém me era bem familiar. Na dúvida, o segui. Quando dei por mim já estava num vestiário, onde jogadores se preparavam. Demorou até eu entender quem eram aqueles ali. “Poetas brasileiros, todos falecidos”, quase exclamei. Nem tive tempo para entrar pânico, pois um deles veio em minha direção. Não tinha como não reconhecê-lo: era Carlos Drummond. Na hora suei frio. “Bem-vindo! Mário de Andrade nos comunicou que jogaria conosco hoje. Logo estaremos em campo”, disse ao me dar um uniforme de goleiro. Enfim lembrei de onde conhecia aquele homem que me guiou até lá. Tremendo, perguntei: “Sou o titular?”. Que alívio o meu quando fez não com a cabeça. “Contra quem jogaremos?”. “Uma seleção do mundo”, afirmou, notando meu nervosismo. Ele era o capitão e camisa 10. A situação piorou quando olhei ao redor e descobri que por lá também estavam Cruz e Souza, Mario Quintana, Manuel Bandeira, Paulo Leminski, Solano Trindade, entre tantos outros grandes craques da nossa poesia, inclusive mulheres, como Cecília Meirelles, a única titular. “Por que me escalaram? Não estou no nível de vocês, nem sou conhecido. Há tantos outros por aí”, insisti. Mário de Andrade foi quem respondeu: “ Disseram que és futebolista de origem, feito João Cabral e Gullar ali. Você é o único poeta literalmente goleiro que temos conhecimento. Essas coisas fazem diferença”, ponderou. “Futebol se joga com a alma”, decretou Drummond, tentando me tranquilizar. “A poesia também”, completei. Sorrimos. Mas só fiquei mais calmo mesmo quando soube que eu era apenas o terceiro goleiro. Castro Alves, o titular, o segundo, Murilo Mendes. Precisava ser muito azarado para me colocarem para jogar. Com todo mundo pronto, subimos em fila rumo ao gramado. No caminho ainda indaguei. “Morri? Por isso estou aqui?”. “Por hora não”, escarneceu Augusto dos Anjos, enquanto amarrava a chuteira. Estávamos num estádio lotado. Parecia final de Copa do Mundo. “Será que estão todos mortos?”, refleti. “Decerto! Vivos ainda, parece-me que somente tu e uma jogadora estrangeira”, disse de repente Álvares de Azevedo, a quem segui até o banco de reservas. “Tudo poeta também moço”, completou Cora Coralina. “O jeito é aguardar e apreciar o jogo”, por fim comentei com Ana Cristina César, de óculos escuros sentada ao meu lado e que nada me respondeu. “Boa tarde senhoras e senhores!”. Gritou Nelson Rodrigues num microfone, em cujos altos falantes sua voz ressoava vibrante; era o narrador da partida, tendo ao seu lado João do Rio e Eduardo Galeano como comentaristas. Ouvíamos a escalação das duas seleções. Seleção Brasileira: no gol, Castro Alves; na zaga, Augusto dos Anjos, Cruz e Sousa; na lateral-direita, Cecília Meireles; na lateral-esquerda Manuel Bandeira; no meio-campo, João Cabral de Melo (como volante), Carlos Drummond de Andrade e Mário Quintana (mais ofensivo); no ataque Paulo Leminski (praticamente um ponteiro), Ferreira Gullar e, bem à frente, Vinicius de Moraes; técnico: Mário de Andrade. “Um timaço”, já decretava João do Rio. “No banco de reservas, o desconhecido Geraldo Ramiere é a maior novidade”, ressaltou Nelson, em tom de ironia. Nem me importei. Sentia-me orgulhoso por estar no meio daquelas lendas não-vivas. Mas quando ouvi a escalação da Seleção Estrangeira, que acabava de entrar em capo, senti um arrepio na espinha. No gol, Frederico Garcia Lorca; na zaga, Octavio Paz e Walt Whitman; na lateral-direita, Marina Tzvetáieva (também única poeta entre os titulares); na lateral-esquerda, Bertolt Brecht; no meio-campo, Charles Baudelaire (como um típico cabeça-de-área), T. S. Eliot (camisa 10 e também capitão do time) e Rainer Maria Rilke; no ataque, Pablo Neruda (na ponta-esquerda), Dylan Thomas e Arthur Rimbaud; técnico: Jorge Luis Borges. Todos poetas que eu conhecia e adorava. Tinha Nobel de Literatura até no banco de reservas. Quando Nelson perguntou o que achava da escalação, Galeano simplesmente aplaudiu. Eu estava sem palavras. Nesse momento entrou o árbitro. Era Fernando Pessoa, tendo como assistentes seus heterônimos Álvaro de Campos, Alberto Caeiro e Ricardo Reis. Os juízes reservas eram Mário de Sá-Carneiro e Florbela Espanca. Nunca havia visto tanta gente em uma arbitragem, porém nada mais me surpreenderia depois que vi a bola do jogo: um amontoado de palavras em forma de esfera. Enfim entendi porque aquela era uma partida de poetas. “Vai começar!”, narrava Nelson. “Eles são favoritos; será um jogo duro”, pensei. “Concordo”, sussurrou-me Torquato Neto ao pé do ouvido. Nós estávamos com o tradicional amarelo; eles vestiam azul. Após o apito, o Brasil deu o pontapé inicial. A partida já começava com equilíbrio, mas tínhamos maior domínio de bola. Desde o início Drummond era o coração do time. Dele saiu a primeira jogada perigosa: um passe longo para Leminski, que rapidamente serviu Gullar, mas que bem marcado por Octávio Paz, precipitou-se e jogou por cima do gol de Lorca. A Seleção Estrangeira respondeu em seguida, com um ataque rápido. O inglês T. S. Eliot era o cérebro deles. Carregou a bola e com esmero passou para Neruda que soneta cruzado, para a ótima defesa de Castro Alves. Dylan Thomas exaltado pedia a bola. E foi no escanteio que saiu o primeiro gol: Brecht bateu de esquerda e Whitman apareceu livre cabeceando para as redes. A Seleção Brasileira não ficou abatida e a resposta veio pouco depois. Novamente Drummond parte com a bola, se livra da falta, vê Cecília Meireles sozinha à direita; ela recebe e com leveza encaminha para Vinicius, que com calma toca no canto. Instantes atrás, lá do banco, Patativa do Assaré já cantava a jogada. O segundo veio em seguida. João Cabral rouba a bola de Rimbaud, passa pra Drummond, que versando com Leminski em velocidade, rimando de primeira para Gullar: mata no peito, ajeita discretamente com a mão, e dispara como um relâmpago para o fundo do gol. “Golaço!”, vibrava Nelson Rodrigues. Os estrangeiros reclamam. Whitman protesta chamando de “sujo” o lance. Pessoa, após consultar Sá-Carneiro e seus assistentes, não vê irregularidade; Florbela parece discordar. O gol mesmo assim é validado. Baudelaire leva cartão amarelo por dizeres obscenos. O clima fica tenso, todavia a partida segue. A Seleção Estrangeira não se abala e Rilke escreve uma bela jogada: se livra de dois e envia a bola para Rimbaud em profundidade; ele ganha de Bandeira na corrida e cruza para Dylan, que com estilo faz o gol. Jogo empatado. Nossa Seleção ataca novamente. Agora Bandeira é quem parte na esquerda com calma. Quintana, até então sumido, recebe a bola, pára, pensa e chuta no travessão. A partida estava bastante balanceada até que Eliot fez a diferença. Recebeu de Baudelaire, após esse trombar com Vinicius, seguiu com habilidade, fintou Augusto, driblou Cruz e Souza, e tocou de cobertura na saída de Castro Alves, deixando nossa defesa desolada. E foi a hora do meu primeiro susto. Com o pé machucado, nosso goleiro precisou ser substituído. Murilo Mendes mal entrara e já tomava um gol: numa jogada construída por Brecht, num lance surpresa, Tsvetáieva apareceu desmarcada e bateu forte, sem defesa. No minuto seguinte Bandeira sente uma dor no tórax e também é substituído. Entra Solano Trindade. Não havia limite de substituições. Já chegávamos a quase 37 minutos, quando nosso goleiro derruba Dylan na pequena área: expulsão e pênalti. Mário de Andrade me chama, e a única coisa que me passou pela mente naquele momento foi: “- Ferrou!”. Mas não tinha outro jeito. Entrei em campo. Nem preciso falar que o clima era de total desconfiança. Nelson Rodrigues fez uma cara que já expressava o sentimento geral. “É agora Ramiere”, disse Drummond, acho que querendo me animar. Eliot é quem veio para cobrança. Silêncio absoluto. Pessoa apitou e… quando pensei em adivinhar o canto já era tarde, a bola veio alta no meio, e ao esticar os braços consegui colocá-la para fora. O capitão deles ficou incrédulo. Nem eu acreditava. Vibração total da nossa seleção e torcida. Tzvietáieva bateu o escanteio e para meu alívio Octávio Paz cabeceou para fora. Rimbaud não aguentava mais, passou mal e foi substituído por Allen Ginsberg. Bati o tiro de meta. A bola chega em Quintana: com habilidade dar um chapéu em Baudelaire quase na linha da grande área, que o atinge com maldade e é expulso. Drummond ajeita a bola sozinho, com toda calma do mundo. Sem ninguém esperar, bate de letra no ângulo de Lorca. Gol de placa. Fernando Pessoa encerra o primeiro tempo, fingindo não ouvir os lamentos de ambas seleções. Pelos altos falantes escuto elogios de João do Rio. No vestiário, Ferreira Gullar discute com o treinador e acaba sendo substituído pelo veterano Gregório de Matos, sob os bravejos de Oswald de Andrade, reclamando pra jogar. No lado adversário entraram Vladimir Maiakóvski, Paul Valéry e Gabriela Mistral, nos lugares de Dylan, Rilke e Brecht (bastante cansado). Apesar das desavenças, voltamos animados pro segundo tempo. Perdíamos apenas por um gol de diferença e o time estava mais confiante em mim. Eu nem tanto, mas disfarçava bem. Recomeça o jogo. A partida estava ainda mais disputada. Do nosso lado, na boca da área Gregório infernizava a zaga adversária; Tzvetáieva acabou levando amarelo. Do lado deles, Maiakóvisk atacando constantemente e Augusto marcava com dureza, até levar cartão também. Com um controle de bola impressionante, Drummond rima para Quintana, que rima com Vinicius, que toca pra Leminski, que com uma passe curto deixa para João Cabral chutar com firmeza de fora da área, fuzilando o gol de Lorca, que resiste e com as pontas dos dedos coloca pra escanteio. Depois disso, eu quem sofreria com os ataques. Defendi não sei como quatro chutes, sendo um de Ginsberg, que tirei com a perna. Atacávamos também, mas agora sem muito sucesso. Faltavam 20 minutos para o fim da partida, quando em nosso time entraram Paulo Mendes Campos, Hilda Hilst e Ana Cristina César, nos lugares de Augusto dos Anjos, Quintana e Vinicius (para a ira de Oswald, que não admitia permanecer no banco). Por sua vez, Borges tirava Lorca (machucado), Whitman, Tzvetáieva e Eliot (exausto) para colocar o uruguaio Mário Benedetti (para a alegria de Galeano), José Craveirinha (único africano do elenco), Matsuo Basho (o mais experiente entre todos) e Guillaume Apollinaire. Celan passou a ser o capitão. Nosso time ficou mais veloz e contra-atacávamos melhor. Foi quando, após cortar uma jogada que via para Basho, vi Solano correndo solto; lancei para ele com a mão o mais forte que pude. Disparando até a lateral esquerda, cruzou para Ana Cristina acertar uma linda bicicleta, com a bola beijando a trave antes de entrar. Empatávamos há cinco minutos do fim. A Seleção Estrangeira não desistia e ainda queria a vitória no tempo normal. Nós já estávamos meio que satisfeitos com a prorrogação. Então apareceu Apollinaire fazendo uma jogada absurda, deixando Valéry frente a frente comigo. O francês bateu com um efeito impressionante. Não me perguntem como saltei daquele jeito, mas fato é que consegui espalmar para fora. “Inacreditável!”, exclamava Nelson Rodrigues. De desconhecido para um dos heróis do jogo. Quem diria. Quando chegávamos aos acréscimos, o técnico argentino fez sua última substituição: a nicaraguense Gioconda Belli no lugar de Neruda. Galeano comentava que ela era a grande novidade na escalação. Com essa entrada, deles só não jogariam a zagueira Sylvia Plath e o terceiro goleiro Rabindranath Tagore. Últimos instantes da partida. Gioconda recebe a bola. Domina com calma. Estava muito longe do gol. Mesmo assim arrisca. O chute veio fraco e rasteiro, para pegar com facilidade. Engano meu. Repentinamente a bola escapa entre meus dedos e vai mansamente parar nas redes. Fernando Pessoa encerra a partida. 5 x 4 para a Seleção Estrangeira. Nelson Rodrigues esbravejava contra mim. Envergonhado, eu continuava no chão. Drummond veio ao meu encontro. “Não deviam ter me convocado para essa partida”, desabafei. “Mas foi você mesmo quem se convocou”, disse, dando-me a mão. “Meu amigo, todos nós aqui fomos convocados por ti e tudo aconteceu por vontade tua”, completou. Levantei-me. E mesmo sem entender direito aquelas palavras, tomei coragem e cumprimentei nossos jogadores (apenas Ferreira Gullar não quis falar comigo) e os da equipe adversária, incluindo Borges, além de Fernando Pessoa e toda arbitragem. Mário de Andrade me abraçou fraternamente dizendo: “Contamos contigo”. Nelson Rodrigues deu-me às costas, mas João do Rio e Galeano foram gentis. E após me despedir, todos partiram. Depois disso, lembro somente que retornei ao ponto de partida, voltando a tentar escrever aquela poesia, que continua no meio do caminho.
                                  
Geraldo Ramiere




Arte: pintura de Mário Zanini

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