terça-feira, 30 de junho de 2020

INFRAÇÃO DA INFÂNCIA

IMAGEM: Arte de Trash Riot

            Por causa da pandemia sabia que sua família não lhe deixaria sair para o parquinho, mesmo acompanhada e tomando todas as precauções. Depois de tantas semanas presa dentro de casa, olhando aquele balanço pela janela, sonhava em respirar ar puro e sentir o sol no rosto. Guardou esse sentimento por tanto tempo que uma hora não aguentou mais. Quase sempre sentada no sofá, durante dias observou o movimento dos adultos no apartamento até conseguir uma brecha. Naquela segunda-feira finalmente esqueceram a chave na fechadura. Silenciosa como era, sem ninguém perceber pôs sua máscara e luvas, abriu a porta e desceu passo a passo pelas escadas dos dois andares até o térreo. Aguardou ainda a distração do porteiro e a entrada de algum outro morador do prédio para escapulir sorrateiramente. Quase saltitou ao constatar que seu plano tinha dado certo. Sentada no balanço, moveu-se sem ser muita veloz, para não ter risco de cair. Nem se incomodou com os cabelos nos olhos por causa do vento. O que é felicidade afinal? Para ela era aquele momento que deve ter durado uns trinta minutos, porém, tinha gosto de eternidade. De longe ouviu o grito desesperado de alguém lhe chamando e pouco depois um certo tumulto na portaria. Mesmo percebendo a aproximação das pessoas, continuou tranquilamente em seu balançar. Parou apenas quando um rosto familiar esbravejou: “Vovó!”. Era a mais velha de suas netas, rodeada por outros membros da família, a maioria sem conseguir segurar o riso. E a sonora gargalhada solta por aquela octogenária senhora, daquelas que ela não dava desde a infância, estava imune a qualquer enfermidade.


Por Geraldo Ramiere

 Miniconto publicado na antologia Entre Janelas: volume II (2020) – Oribê Editorial – Org. Mayã Fernandes.

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