segunda-feira, 8 de junho de 2020

O ASTRONAUTA QUE NÃO SABIA ANDAR DE BICICLETA -

       

 Hoje, mesmo sendo domingo e ainda por cima férias, Mamãe me acordou cedo. Protestei, enrolei, só que não adiantou nada. É porque tenho que me arrumar para receber meu tio. Nunca o vi, tirando várias fotos antigas dele com meu pai e umas comigo quando eu era bebê. Achei graça quando fiquei sabendo que o nome dele era Júnior. Já tinha ouvido falar de Tio-Avô, mas de Tio-Júnior foi a primeira vez. Tô vendo a hora de me aparecerem com um Tio-Neto, um Tio-Primo ou até um Tio-Irmão. Família é sempre engraçada. Papai e Mamãe falaram que ele vai ficar as férias inteiras com a gente. No começo não me animei tanto. Afinal é um tio que eu nem conheço de verdade. Como a gente pode gostar de alguém que a gente não conhece? E o tempo que a se é bebê não conta. Só me empolguei quando fiquei sabendo de quê ele trabalhava. Na hora nem acreditei. Meu tio é astronauta! Tinha minhas dúvidas até um tempinho atrás. Aí vi sua foto no jornal numa Estação Espacial, com traje, capacete e tudo mais. Por isso ficou tanto tempo longe e só vou conhecê-lo direito agora. Ele vai chegar na hora do almoço. Papai foi buscá-lo no aeroporto. Será que ele joga bola?
          Meu tio chegou. Parece muito com Papai. Só que mais magro. Me deu um abraço com barba, falou que cresci muito, já sou quase um rapaz, essas coisas que tios sempre dizem. Ganhei dele uma espaçonave de brinquedo com o nome da NASA. Muito legal. Ponto para meu Tio-Júnior. Mais tarde a gente sentou na varada para conversar. Então o tio começou a contar sobre suas viagens espaciais. Claro que eu não parei de perguntar. Disse que na Estação Espacial é bem legal, só que eles trabalham muito e quase sempre ficam consertando satélites. Falou sobre o Sol, a Lua, planetas, estrelas, meteoros, galáxias, nebulosas e um monte de coisas que eu nem imaginava que existiam. Contou como era viver no espaço, da tal gravidade zero que faz a gente levitar, o que comiam lá e como fazem para tomar banho. Das dores e tonturas que sente quando vai e chega do espaço, do friozinho na barriga toda vez que o ônibus-espacial decola e pousa. Também falou de como foi difícil virar astronauta, só que como era seu sonho, desde quando tinha minha idade, ele nunca desistiu. “Minha cabeça sempre esteve acima das nuvens”, disse, rindo. Papai concordou, rindo também. “E você? Quais são seus sonhos? Do que você gosta?”, perguntou pra mim. Aí foi minha vez de contar. Que eu ia ser jogador de futebol do meu time de coração. Falei da minha escola, dos meus colegas, dos meus professores, dos desenhos e personagens que mais gosto e de um tanto de outras coisas. E cada noite meu tio contava suas aventuras espaciais e depois eu contava as minhas, terrenas mesmo. Mamãe e Papai também contavam as deles. Era muito bacana. E durante o dia a gente sempre brincava de alguma coisa. Futebol (pra minha surpresa, descobri que meu tio era goleiro, inclusive foi o melhor da sua escola, dizendo ele), basquete, pingue-pongue, soltar pipa, rodar pião, vídeo-game, dominó, xadrez (o tio me ensinou, achei chato no começo, mas agora até tô gostando) e um tantão de jogos e brincadeiras. Quase sempre tinha mais alguém se divertindo com a gente. O Vô e a Vó, meus outros tios e primos . A gente se divertia muito o dia todo.
            Já tinha umas duas semanas que o Tio-Júnior tava com a gente quando aconteceu. Foi um dia depois do nosso acampamento no quintal. Batíamos bola, eu, meu tio e a Mamãe, enquanto Papai fazia o almoço. Nosso cachorro, sem a gente ver, mordeu a bola e a furou, acabando com nosso jogo. Aí peguei minha bicicleta e chamei o tio e Mamãe para andarmos juntos. Achei estranho quando ele ficou meio nervoso e um pouco vermelho, dizendo que não tinha trazido nenhuma bicicleta. Falei que ele podia pegar a do papai. De repente Tio-Júnior disse que tinha que ir ao banheiro. Ficou lá um tempão. Não entendi nada. Depois que escureceu, antes do jantar, Papai e Mamãe foram lá no meu quarto. Me explicaram o problema com meu tio. Tio-Júnior não sabia andar de bicicleta. Na hora até tentei segurar, só que não consegui deixar de rir. Mamãe brigou comigo. Papai riu também. Depois me disse que sempre fazia piadinhas com meu tio sobre isso, e ele nunca se importou. Talvez tenha ficado com vergonha por minha causa. “Ninguém nunca ensinou o tio a andar de bicicleta?”, perguntei. Ele nunca quis aprender, respondeu Papai. Falava que não gostava de bicicletas, que preferia outras coisas, queria era ser astronauta. “Papai, por que o senhor ou a Mamãe não ensinam pra ele?”, perguntei de novo. Me responderam que seu um dia o Tio-Júnior pedir eles ensinam, mas só se ele quiser. Mamãe e Papai me falaram também que isto era um segredo de família. Apesar de ser normal, que havia muitos outros adultos que também não sabiam andar de bicicleta, eu não podia contar pra ninguém sobre isso, nem para meus melhores amiguinhos, porque o tio podia ficar chateado. Mesmo não entendendo direito porque tanto segredo, prometi guardá-lo.
          Dois dias se passaram. Ninguém se lembrava mais daquilo. Era sábado de manhã. O tio tinha comprado uma bola nova pra gente e estávamos jogando futebol. Papai tinha ido passear com o cachorro e Mamãe foi à padaria. Só ficamos nós dois. De repente, falei pro tio: “vou ali rapidinho pegar uma coisa para mostrar pro senhor”. Tio-Júnior levou um susto quando cheguei com a bicicleta do Papai, ficando mais assustado ainda quando eu disse: “pode deixar que te ensino, tio”. Na hora ele ficou sem graça, falou que não andava de bicicleta porque este era um veículo ultrapassado e, além do mais, era perigoso para astronautas andarem num troço assim, inclusive num dia desses um caiu enquanto pedalava e se machucou tanto que foi não pode ir a uma missão, e não sei o que mais. “Tio-Júnior, sei que o senhor não sabe andar de bicicleta, deixa eu te ensinar, porque aí a gente pode pedalar juntos; não tem perigo e prometo que não conto para ninguém que estou te ensinando, até o tio aprender”, disse apenas. Ele resmungou, mas acabou concordando. Subi na minha bicicletinha primeiro, mostrando como mexer com os pedais, o guidom e os freios. Falei então pra ele subir na do Papai e fazer a mesma coisa. Tio-Junior subiu confiante, só que logo na primeira pedalada perdeu o equilíbrio e levou um tombo feio. Dessa vez segurei o riso. O tio tentou mais umas três vezes. Foram mais três quedas. Na última, me disse: “não levo jeito para isso não meu filho, meu negócio não é no chão, é bem acima dele”. Pedi para ele tentar mais uma vez e “não peço mais”, prometi. Tudo bem então. Lá vai meu tio em sua última tentativa. Sobe na bicicleta. Mexe nos pedais. Começa a andar. Por enquanto está indo bem. Dá uma voltinha. Ah, não! O tio perdeu o controle! “O freio!”, gritei. Essa não! No jardim da mamãe não! Pa! Pa! O tio caiu bem em cima da roseira que estava dando flor. O tio, mesmo se espinhando todo, não teve nenhum ferimento grave. Pelo menos nada que o impeça a ir para uma nova missão espacial. Não posso dizer o mesmo da bicicleta do Papai e da roseira da Mamãe. Falando neles, os dois acabaram de chegar. Levei bronca. Eu devia ter cuidado melhor do meu Tio-Júnior. Ele deve ser um ótimo astronauta, só que não leva mesmo nenhum jeito com bicicletas.
        As férias estão acabando. Sábado passado fiz aniversário. A festinha foi aqui em casa mesmo. Tava minha família toda. Meu tio me deu de presente o capacete de astronauta que usou na última viagem ao espaço. Centésimo ponto para o tio. Ele vai embora hoje. Vai voltar para casa dele, em outro país. Em breve irá de novo para a Estação Espacial. “Algumas pessoas são melhores com as estrelas”, disse ele, ao me contar uma última estória espacial, mas que acabou não terminando. “Conto o final quando eu visitar vocês de novo”, disse. “Vamos nos falar por e-mails”, pedi. Ele prometeu que sim, e que também vai me escrever cartas, e que irá mandar meu presente de aniversário do ano que vem pelo correio. Meu deu um abraço forte, dessa vez sem barba, e foi para o aeroporto com Papai, que também chorava muito, feito a Mamãe. Vou sentir a falta dele, mas concordo que cada pessoa tem um lugar que combina com ela, e do meu Tio-Júnior é realmente acima da Terra. Amanhã as aulas começam. Vou aproveitar para jogar vídeo-game de tarde até a noite. Como estou triste, sei que meus pais vão deixar.
Tem quase um ano que meu tio foi embora. Ele já está há três meses no espaço. Troquei várias cartas com ele e também nos falamos pela internet. Só que não é a mesma coisa. Espero que o tio volte logo. Quero ouvir o final daquela última estória e conhecer suas novas aventuras siderais. Hoje é meu aniversário de dez anos. Mamãe me acordou cedo, mesmo sendo domingo e finalzinho das férias. Pelo menos é por um bom motivo. Chegou um pacote do correio pra mim. É do Tio-Júnior. Dentro do envelope tem um telescópio com uma carta e uma foto. Na carta o tio diz que o telescópio era dele, e agora é meu, para vê-lo nas estrelas. Adorei o presente, mas confesso que o mais legal é a foto. Meu tio na Estação Espacial, conduzindo sabe o quê? Uma bicicleta! Na verdade, levitando nela, sem gravidade. Nem imagino como ele conseguiu levar uma dessa escondida pra lá. Atrás da foto está escrito: “Meu querido sobrinho. Esta é para você que me incentivou a aprender a andar de bicicleta. Eu aprendi do meu jeito. Meu próximo sonho agora é pedalar na lua. Quero ver uma foto sua em breve, como um grande jogador do seu time do coração. Nenhum sonho é impossível de realizar, desde que se acredite nele. Abraço forte! Seu Tio-Júnior”. Eu não poderia ter recebido presente melhor. Hoje à noite já vou usar o telescópio. Irei escrever uma carta pro tio amanhã mesmo. Só não sei se vou contar pra ele que não tenho mais certeza se quero ser jogador de futebol. Estou pensando em ser médico, pianista, arquiteto, ou até mesmo astronauta. Ainda tenho muito tempo pra decidir isso. Daqui a pouco será minha festa, aqui em casa de novo. Papai alugou o pula-pula outra vez. Vou me encher de brigadeiros.

Por Geraldo Ramiere - este foi meu primeiro conto infantil, premiado em concursos literários e publicado em antologia.




Nenhum comentário:

Postar um comentário

Tradutor